Aquele ponto no mapa

 












Aquele ponto no mapa 

Aquela mancha negra no centro da Europa
aquela mancha vermelha aquela mancha de fogo aquela mancha de fuligem aquela mancha de sangue aquela mancha de cinzas
para milhões um lugar sem nome.
De todos os países da Europa de todos os pontos do horizonte os comboios convergiam
para o i-nominado carregados de milhões de seres
que eram ali despejados sem saberem onde era
despejados com as suas vidas
as suas recordações com as suas pequenas doenças e o seu grande espanto
com os seus olhos que interrogavam e que não viram senão fogo,
que arderam ali sem saber onde estavam.
Hoje sabe-se Sabe-se há uns anos
Sabe-se que aquele ponto no mapa
é Auschwitz Sabe-se isto
E o resto pensa-se que se sabe.

Charlotte Delbo

DELBO, Charlotte. Auschwitz e Depois. Tradução Joana Morais Varela. Lisboa, novembro 2018, p. 184-85.



















Como continuar a viver se o corpo recorda os golpes, a fome, a sede, o medo e o desprezo? Charlotte Delbo continuou e com essa(s) memória(s) escreveu livros exigentes e líricos, belos e acutilantes, como os três que compõem Auschwitz e Depois.

Nenhum de Nós Há-de Voltar, Um Conhecimento Inútil e Medida dos Nossos Dias são os respetivos nomes e partilham entre si a sensibilidade dessa mulher, resistente, presa política, sobrevivente, e todos expõem imagens estilhaçadas e tenebrosas de Auschwitz bem como o poder que o horror tem de desalinhar biografias que nunca souberam como atar o nó com quem eram antes da guerra.

Se Nenhum de Nós Há-de Voltar, só editado em 1965, quase vinte anos depois de ser escrito enquanto Charlotte recuperava na Suíça, foca-se no quotidiano do campo numa perspetiva pessoal do que foi visto, sentido e suportado, o segundo volume Um Conhecimento Inútil, publicado em 1970, colmata espaços não descritos desta jornada infernal (Ravensbrück; os SS que se tornam progressivamente humanos; o primeiro encontro com civis) bem como dá espaço a uma nova inquietação: o que fazer quando voltarmos? Da verificação do que foi feito, ou possível fazer, desses destinos que sofreram o indizível nasce o último livro da trilogia, Medida dos Nossos Dias.

Ao longo das últimas décadas, traduzida e editada, Charlotte Delbo foi encontrando o seu espaço no mundo livresco fora de França. Cada vez são mais os leitores que aceitam o apelo de Charlotte: olhar para tentar ver.

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