Era bom que estivesses aqui, de David Leland

 

Crítica de cinema

Por onde quer que ela passe, parece que passa de bicicleta, mesmo quando vai a pé, ávida, insatisfeita, “combativa e frágil”




O Blu-ray vem com quatro postais, e um deles pode bem ser, agora que penso nisso, um dos postais da minha adolescência. A imagem é a de uma rapariga despenteada, de vestido cor-de-rosa levantado e pernas nuas, a atravessar de bicicleta uma estrada em frente a uma tristonha praia inglesa. A rapariga, Lynda, era interpretada por um furacão em forma de gente, Emily Lloyd, de 16 anos, a idade que eu tinha quando vi o filme, em 1989.

David Leland ganhou notoriedade como argumentista (“Made in Britain”, “Mona Lisa”), e do seu trabalho enquanto cineasta só conheço mesmo “Era Bom Que Estivesses Aqui” (“Wish You Were Here”), que se estreou em 87 e foi premiado em Cannes e nos BAFTA. Revi-o há dias, depois de ler a notícia da morte de Leland, porque me interessam estes confrontos entre juventude e meia-idade, entre os 16 e os 51. Tinha memória de um filme bastante bom, mas é apenas simpático no sentido inglês: amável, pudico, melancólico, espirituoso, poético sem exageros. Situado em 1951, numa cidadezinha costeira (e filmado em Worthing, West Sussex), reconstitui aquela Inglaterra entediante dos poemas de John Betjeman, como o célebre “come friendly bombs and fall on Slough”, que deu origem à canção ‘Everyday Is Like Sunday’: uma comunidade de honestos cidadãos e cabeleireiros e casas de chá e fotógrafos e apostadores e maçons e lojistas e patriotas e tarados e bêbedos e veteranos de guerra e velhotas ao piano.

Nessa imagem estática, intrinsecamente mais sépia do que colorida, passa veloz e garrida uma rapariga de cabelo louro ao vento, olhos azuis transparentes, boca expressiva, casaquinho, vestido cintado. Engraçada e desbocada, indolente e insolente, impaciente e atrevida, exibicionista e ansiosa, muito viva, muito respondona, desgostosa porque perdeu a mãe, aborrecida com tudo, Lynda não vive ainda numa “sociedade permissiva”, está obrigada ao dulce et decorum est dos últimos dias do Império, às aparências, ao duplo padrão, às baixas expectativas. Por onde quer que ela passe, parece que passa de bicicleta, mesmo quando vai a pé, ávida, insatisfeita, “combativa e frágil”, como escreveu a crítica. Uma jovem que se identifica com um postal da juventude, como este que vem com o Blu-ray e que deixei agora mesmo na estante.

Emily Lloyd, como Lynda, no filme de 1987 realizado por David Leland D.R.


A continuada popularidade do filme talvez se explique pelo efeito nostálgico, mesmo que Leland dissesse que não sentia nostalgia nenhuma. E explica-se de certeza por um motivo que ele resumiu assim: “Everybody loved the girl.” A rapariga-Lynda e sobretudo a rapariga-Emily, que assim se estreou, prodigiosa e bem maior do que o filme (mérito da actriz, mas também do cineasta, até porque a carreira dela foi depois disso acidentada e esquecível). A David Leland, nascido em 1941, Lynda serviu como figuração juvenil do que era ser jovem na Inglaterra antiquada de 1951. Por isso mostrou o cinzentismo e o conformismo rasgados de cima a baixo por uma adolescente em movimento, atrevida e juvenil (“up yer bum” é a sua frase emblemática), entre amores frustrantes, melodramas de Hollywood, desobediências à autoridade, canções romântico-tétricas (“Don’t try to wake me/ I am lost in a dream”), alguma alegria, alguma ingenuidade, uma fúria de viver sem jeito para viver (“Tens tanta pressa” diz o pai, como se não fosse um elogio).

E desta vez “Era Bom Que Estivesses Aqui” lembrou-me um poema muito importante para mim em tempos, talvez aos 16, mas talvez também aos 51: “Uma rapariga vai como uma espiga/ Carnal e cereal intacta cerrada/ Mas nela enterra sua faca o vento// E tudo espalha com suas mãos o vento.”

Pedro Mexia. E-Revista Expresso, Semanário, 9 de fevereiro de 2014


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