Gonçalo M. Tavares começa a contar uma história do mundo

 


“As Botas de Mussolini”, de Gonçalo M. Tavares, é a primeira obra de um conjunto a que o escritor deu o nome de ‘História Fragmentada do Mundo’, “prosa sonoramente pensada e partida para ser lida em voz semialta”

AS BOTAS DE MUSSOLINI, de Gonçalo M. Tavares
Relógio D’Água, 2023, 63 págs.


Numa breve nota inicial, GMT explica o que procura nestes exercícios: “saltos no tempo e na frase”. Ou seja, um olhar aéreo sobre o mapa da história humana dos últimos séculos, em busca de continuidades e rimas, padrões e sinais de alerta, que nos permitam, se não evitar os mesmos logros, tragédias e repetições, pelo menos ficar de sobreaviso. “Há um segundo som debaixo do som de cada coisa e é esse segundo som, sem dúvida, o som verdadeiro.” Trata-se, então, de descascar o real. Mas sobretudo de olhar para trás com mais atenção, ou talvez de outros ângulos, procurando discernir o que antes nos escapou. Identificar as fontes de uma “nova turbulência antiga”.

Tavares recua até ao início do “Período do Terror” da Revolução Francesa, em 1793, mais concretamente ao dedo indicador de Robespierre, esse dedo que ao apontar tinha o poder de separar cabeças dos corpos. E salta depois no tempo, entre momentos de iminência da barbárie. A mão do jovem Hitler que pintou a aguarela falhada no exame de arte em Viena (faltavam-lhe elementos humanos, disseram os professores — oh, a ironia) e mais tarde quis desenhar um novo mapa da Europa, erguido sobre os escombros da guerra. A voz do imperador Hirohito, que os seus súbditos ouviram pela primeira vez, humaníssima, pela rádio, a anunciar a derrota do Japão. Enrico Fermi junto ao seu reator atómico, antecipando o poder devastador de uma “destruição aperfeiçoada ao milímetro”. A construção súbita do Muro de Berlim. O internamento no sanatório de um Nietzsche demente, dizendo que “preferia ter sido professor em Basileia a ser Deus”. Ou as botas com que Mussolini foi executado, de cabeça para baixo, guardadas por um miúdo da resistência numa “modesta gaveta” algures, objetos “com a potência de um vulcão paciente que para todo o sempre parece calado e quieto, mas não está, não fica e não ficará”.


José Mário Silva. E-Revista Expresso. Semanário. 2 de fevereiro, de 2024


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