Sugestão de leitura | Paula Rego - A luz e a sombra

 














A Ericeira foi um dos locais onde Paula Rego passou muito tempo da sua infância e adolescência. Nesta localidade costeira, nos anos 50, a vida era rude, sobretudo para as mulheres. Cristina Carvalho, que há vários anos vive nesta zona e conhece o passado e o presente da vila piscatória e sua envolvência, procura recriar a vida da pintora neste ambiente. 

"E jamais me cansarei de falar deste assunto: o medo.
Por tudo isto, de quê ou de quem é que me lembro sempre e todos os dias da vida inteira? Da minha infância solitária, dos meus avós, da casa deles e da quinta cheia de alegrias e terrores infantis que tanto me alimentaram as fantasias.
Era na Ericeira, a única casa. Para mim, era. E foi aí que desenhei e pintei as sombras mais completas e menos perceptíveis, ainda que evidentes, dessa umbra que me envolveu e envolve.
Essa casa, enorme, aconchegada, desde que me lembro, foi o meu maior sustento sentimental.
Até ser possível.
Quando chegava o Verão, a avó chamava umas quantas mulheres para trabalhar na cozinha, nos quartos, nas atenções diárias que uma casa tão grande obrigava.
Ainda no tempo da minha vida que durou 87 anos, a Quinta Figueiroa Rego, a tão por mim amada casa dos avós na minha tão festejada Ericeira, ainda que já não fosse da família há muitos anos – foi vendida esta parte da minha vida, logo a seguir à Revolução de Abril – desapareceu, por completo, das memórias da vila e de todos quantos a conheceram.
Nos dias que correm, é um albergue para turistas. O bosque verdejante também já não existe. No seu lugar apareceram muitas construções altas, prédios rodeados de vias rápidas, um grande hipermercado…
É a civilização.
E o nosso coração?
O meu?
O teu?"

Cristina Carvalho


Paula Rego - A Luz e a Sombra. Relógio D'Água, 2023

Comentários