“Taludes Instáveis”, o estado dos campos na poesia de José Carlos Barros

 


O remoto, o abandonado, o rústico e o sazonal são matéria dos poemas de José Carlos Barros, nascido em Boticas, Trás-os-Montes, e residente no Algarve. Ullstein bild/Getty Images









O volume “Taludes Instáveis” reorganiza a poesia de José Carlos Barros: uma voz que reivindica um território e uma paisagem, e que — sendo-o — ironiza sobre a literatura


Bem sabemos que em literatura a biografia ‘não importa’, mas é impossível ignorarmos a informação de que José Carlos Barros (1963) nasceu em Boticas e vive em Cacela, na medida em que o remoto, o abandonado, o rústico e o sazonal são matéria dos seus poemas. Como não é abusivo imaginar que a formação em arquitetura paisagista lhe tenha dado uma noção exata da ‘paisagem’ enquanto obra humana, por oposição à ‘natureza’, que existe independentemente de nós.

À antiga ‘província’ chamamos por vezes ‘o país real’, designação que denota orgulho, remorso ou paternalismo, como se a ‘realidade’ fosse uma compensação do nosso esquecimento e incúria. Isso explica que “Taludes Instáveis” reorganize os poemas de 12 coletâneas do autor, a primeira das quais de 1984, segundo a divisão em “horas canónicas” (matinas, laudes, vésperas, completas, etc.), não por inclinação cristã, mas para sublinhar um tom ancestral e meditativo, mesmo quando estão em causa os dias de hoje e a linguagem é vernácula, impaciente.

O primeiro verso do livro, “digo o que não sei”, parece um paradoxo, uma vez que os poemas se referem àquilo que o ‘eu’ conhece bem, falam de bosques, cerejas, glicínias, veredas, ulmeiros, roseiras bravas, da infância, dos amigos, dos avós, de feiras e festas de aldeia, candeias, telheiros, canções, desacatos, amores amantíssimos ou amargos, as “coisas simples” que o poeta enumera, umas perdidas no tempo, outras expulsas da literatura pelos “modernos” para quem o território físico e emocional de “Taludes Instáveis” é, como se diz coloquialmente, paisagem. Mas se amamos apenas aquilo que conhecemos, o que acontece ao que se modifica ou se esfuma? Seja qual for a resposta, José Carlos Barros mantém-se fiel a um território e à própria noção de ‘território’. A sua geografia física não se distingue da geografia humana, constituindo ambas uma possibilidade impossível: recordações, fotografias a sépia, lugares ausentes, práticas imemoriais, extintas, a vida como aconteceu um dia ou como podia ter sido e já não será.

Muitos destes poemas consistem em evocações de uma pessoa ou grupo de pessoas que em tempos faziam certas coisas, tinham determinados gestos, hábitos, costumes, o que conduz o poeta às litanias e aos catálogos: “às páginas dobradas dos livros de geologia,/ aos incêndios, ao rumor dos caules da insónia,/ às fendas das águas subterrâneas/ dos relâmpagos, ao amor sem o cálculo, ao álcool,/ às bombas de combustível, aos declives,// a tudo isso e mais a juventude deve/ a eternidade do seu tempo imenso e breve”. Os sujeitos destes poemas, um ‘eles’ que inclui o ‘eu’, não se comportam agora como se comportavam dantes: ou porque estão mortos, ou porque a adolescência passou, ou porque o campo se parece mais com a cidade e perdeu a singularidade, o carácter. O estado dos campos, incluindo o campo afetivo, vive então num equilíbrio instável entre a emoção, o desânimo e a indignação.

Por outro lado, manifesta-se nestes poemas um constante confronto entre a literatura e a vida-tal-como-é. ‘Literatura’ surge como termo sarcástico, uma imitação, um desconhecimento, uma sofisticação ou pose oposta à naturalidade. Um poema intitulado “O crítico literário vai de férias à província” anuncia logo ao que vem. Para o “crítico”, expoente máximo da nefelibata “literatura”, a “província” é um lugar exótico, que ele visita “de férias”. Quase toda a poesia ‘quotidiana’ da geração de Barros e da seguinte é estritamente urbana, mas o problema está em julgar que só há quotidiano onde há WiFi. O que sucede ao tal crítico? “Da varanda do quarto/ viam-se/em vez das aliterações/ o vale// e os pinheiros-bravos/ a subir/ o monte. Acordava-se assim/ a olhar as coisas// concretas. Como se/afinal/ além da literatura houvesse// mundo: casas,/ pessoas, pássaros/ que voavam mesmo.” O “que voavam mesmo” é o golpe de misericórdia: os pássaros verdadeiros em oposição aos pássaros inventados da literatice. A ideia do ‘concreto’ face ao inútil percorre o livro, como quando se assegura que “o vento do poema / não faz mexer/ uma folha” (“poetry makes nothing happen”, escreveu Auden), quando se lamenta que o poema não tenha a utilidade de uma farmácia, ou quando se deseja um poema “que não dissesse”, como se ‘dizer’ fosse um afastamento da evidência, e já uma espécie de traição.

Claro que alguém que afirmar coisas assim num poema joga com uma ambiguidade. José Carlos Barros acusa a literatura de prepotência ou alheamento, como a ‘província’ acusa ‘Lisboa’, mas os seus recursos literários são vastos e engenhosos, da forma-soneto ao poema em prosa, do dístico ao haicai e à discursividade narrativa, dos poemas lúdicos (incluindo um dactiloscrito onde faltam letras) aos subtis diálogos com a pintura: “Uma cumplicidade/ insuspeita com o fogo traía a tranquilidade/ frágil da composição, como se vermeer/ não soubesse ainda conter a paixão e o tumulto/ e do mais fundo de si irrompessem com violência/ todos os nomes que mais tarde quase/ não poisaram nos seus quadros.” E em inúmeros versos encontramos uma acuidade vocabular e um cuidado estrófico que são ‘literatura’ e nem podiam deixar de ser, porque a literatura, como a paisagem, é cultura, não natureza: “A luz mudava de lugar/ quando a linguagem mudava de lugar/ os objetos”.

Taludes Instáveis - Poemas Escolhidos
Dom Quixote, 2024, 336 págs.




Também literária é a afinidade geracional com poetas como Jorge Sousa Braga (no lirismo, na mordacidade, no minimalismo) ou Francisco José Viegas (num romantismo de louvor e elegia). Não por acaso, o prefácio de “Taludes Instáveis” é de Viegas, que lembra muito acertadamente que o suposto “bucolismo” desta poesia não é pacífico ou acomodado, mas que poderá ficar como “um fragmento para recordação de um tempo de guarda-rios e pequenos pântanos, como talvez fosse possível numa certa leitura da nossa tradição lírica — com menos epopeia e menos gosto pela solenidade”.


Pedro Mexia. Revista E - Semanário Expresso, de 29 de março de 2024


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