Merecer Camões, segundo Jorge de Sena
“

Jorge de Sena | Rui Ochoa
"O Pensamento de Camões” é um conjunto de quatro ensaios de Jorge de Sena: uma leitura que tenta ‘ajustar’ a imagem de Camões não como catálogo de glórias e grandezas nacionais, mas como um exemplo da experiência e da vontade, da língua e do entendimento.
Quando dizemos “Camões”, referimo-nos ao homem, ao mito ou aos poemas? Escritos por volta dos 400 anos da publicação de “Os Lusíadas”, estes quatro ensaios (um verbete para a Enciclopédia Britânica, um artigo, uma comunicação académica e um prefácio) começam por fazer essa pergunta.

Quanto ao homem, temos pouco mais que suposições. Isto porque não sabemos em que ano nasceu Camões, se frequentou a Universidade de Coimbra, como adquiriu aquela robusta cultura literária, ou quem foram as mulheres que amou. O que nos diz então aquilo que está comprovado, ou seja, os desacatos, os bordéis de Lisboa, as décadas da Ásia, o olho vazado, a tença? Diz-nos que o certo e o hipotético convergem e se confundem, formando uma única e poderosa mitologia.
Há uma velha imagem romântica de um Camões “génio aventureiro, infeliz no amor, morrendo mísero, ignorado pela sociedade”, mas facilmente encontraremos outras e contraditórias dimensões, como o sujeito desconsolado com o desconcerto do mundo, ou o gabarola dom-juanesco, com uma “segurança terra-a-terra” e “um absoluto cinismo inocente”. O que é evidente nos seus versos é a extraordinária convivência entre “as tradições cristãs e judaicas, paganismo e cristianismo, platonismo e empirismo, intelectualismo e sensualismo, realismo e fantasia, história e imaginação literária, patriotismo e um amor humanista universal, tristes frustrações e euforias epifanias”.
Resgatando o poeta da “estreita visão do nacionalismo e catolicismo portugueses”, Sena destaca tópicos como a pouca importância do pecado até nos poemas devotos, a centralidade da lírica intimista, um universalismo que nasce da experiência, ou a ideia de pátria menos como “celebração ingénua e orgulhosa” do que como “aviso trágico e desesperado”.
A insistência no primado da força, das ideias, do exílio, da ousadia estética (“na magnitude do Belo, não há mal que não seja bem”) ou de um patriotismo agreste que vê a pátria como incorrigível, faz com este pareça um Camões à imagem de Sena. Mas talvez nos seja vantajoso a todos ajustar a imagem que temos de Camões, que é um modo de “merecer Camões”. Agora que de novo o comemoramos, mesmo se com algum “ceticismo irónico acerca de comemorações”, é urgente entendê-lo não como catálogo de glórias e grandezas nacionais, mas como um alto exemplo da experiência e da vontade, da língua e do entendimento.
Comentários
Enviar um comentário