Crónica | Sobre a vida insuficiente
Olhemos para a facilidade com que, hoje, nos mais variados contextos, se utiliza a expressão: “isso é surrealista”, “isso é surreal”. Muitas vezes para designar algo que se considera absurdo e despropositado. Mas também, em certos momentos, a expressão “isso é surreal” é usada referindo-se a algo espantoso e surpreendentemente bom. Como ficamos?
Talvez isto, uma hipótese: utilização “burguesa” da palavra surrealista: como se deseja o previsível e o normalizado, o que sai da norma e surpreende é “surrealista” com marca negativa.
Para os que, pelo contrário, vivem na expectativa de, no dia seguinte, encontrarem algo distinto, para aqueles, então, que necessitam da surpresa ou, pelo menos, do ligeiramente invulgar, a palavra “surreal” é assumida como marca benigna, marca que salva o dia.
Isto é surreal, dizem uns. Ou seja: isto é péssimo.
Isto é surreal, dizem outros. Ou seja: isto é extraordinário.
2.
As entrevistas a Mário Cesariny, o verdadeiro surrealista, têm linhas bem provocadoras e irónicas. Falando do período da ditadura em Portugal, diz: “Os neorrealistas faziam da prisão uma glória. A gente não estava assim tão interessada.”
Depois, Cesariny explica a sua referência a este nível: “Acho mais graça ao Voltaire, que, quando em Paris as coisas estavam tremidas, ia para o castelo de um desses reis alemães, oferecia-lhe um relógio, e depois voltava quando as coisas em Paris já estavam calmas.” Cesariny conclui: “Ser preso é muito chato.”
3.
É curioso que — enquanto movimento artístico mas, acima de tudo, enquanto movimento de procurar uma vida diferente — o surrealismo partia de um ponto assente: a realidade era pobre e o surrealismo seria a maneira de a enriquecer. Era o chamado “princípio da insuficiência” da vida normal e da normal realidade. Insuficiência de imaginação, das possibilidades de ação, das possibilidades de prazer, etc. A realidade era pouquinha e o mundo medíocre. “O pragmatismo não está ao meu alcance”, escrevia-se, num dos manifestos surrealistas.
4.
Podemos imaginar, a partir daqui, uma nova espécie humana que fosse geneticamente incapaz de ser pragmática e funcional; uma espécie humana talhada para o devaneio e para as ideias absurdas, uma espécie humana com tendência para nunca ir pelo caminho mais curto, uma espécie humana que não apenas fosse incapaz de praticar a religião do pragmatismo, mas considerasse mesmo o pragmatismo um horror, uma forma de degradação do potencial humano.
O modo mais funcional de resolver as coisas, seria, para uma sociedade absolutamente surrealista — em termos artísticos, existenciais e políticos —, um modo feio de resolver as coisas. Em vez de escolhermos a eficácia, escolhermos a beleza, eis uma hipótese.
Eu sei como resolver o problema — diria um funcionário que funciona.
Essa solução é bela?, perguntaria o esteta surrealista ou, simplesmente, o esteta.
Claro que o melhor dos mundos seria uma solução pragmática e bela ao mesmo tempo. Muitos físicos e matemáticos falaram já, aliás, da beleza de certas fórmulas. Muitos outros grupos, como os futuristas, publicitam a beleza das máquinas, a beleza do metal solucionar algo com grande rapidez.
Mas sim, imaginar, de uma maneira ou de outra, que uma sociedade assumisse sempre a beleza como o objetivo essencial.
Algo que não funcionasse, mas que fosse belo, mereceria a mais ampla admiração.
5.
Imagino, neste contexto, um sujeito que se levanta e entra na sua vida e, subitamente, como se estivesse a ver-se de um ponto mais acima, diz: isto não é suficiente.
Olha, depois, para a cidade e para a pressa de cada um, com destinos diferentes, e diz: isto não é suficiente.
Como começa a procura da beleza, na arte e no dia básico? Com a expressão: isto não é suficiente.
6.
O que é isto de querer uma outra vida?
Um grande escritor grego, Yannis Ritsos, escreveu:
“um barco
desenhado a giz
no interior da porta da prisão.”
Talvez isto.
Gonçalo M. Tavares. E-Revista, Semanário Expresso, 16 de maio de 2024
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