Cantar Camões
Tendo
sobrevivido a Alcácer-Quibir, D. Sebastião foi detido em Lisboa e
encarcerado numa prisão à beira Tejo. Ao longe, ouve um cântico que
reconhece vindo de uma embarcação no rio e apercebe-se de que vêm em seu
auxílio. Ao fugir na descida da Torre de Belém — a dita prisão —
cortam-lhe a corda pela qual se esgueirava, cai e morre afogado nas
águas do Tejo. O cúmplice, seu salvador e companheiro de expedição em
África, é Luís Vaz de Camões que, alvejado de imediato, foi recolhido
por um barco de marinheiros.
Esta
é mais uma versão de imaginação romanesca do trágico desaparecimento do
nosso “Encoberto” e desde então messiânica figura. “Dom Sébastien, roi de Portugal”
é uma peça de teatro escrita pelo prolífico dramaturgo francês Paul
Foucher que teve um estrondoso sucesso em Paris em 1838 e que levou à
encomenda da sua adaptação a uma ópera por parte do diretor da ópera da
cidade. Foi assim que Gaetano Donizetti (1797-1848), entusiasmadíssimo,
se dedicou de alma e coração à composição de uma grande ópera histórica
muito em voga nesse tempo em Paris. Estreada em 1843, acabaria por ser a
sua última obra, pois, em virtude de um processo de demência causada
pela sífilis viria a ser internado num asilo. Os ingredientes do enredo
são imensos e intricados como sempre: temos uma princesa mourisca, feita
escrava e a grande paixão do rei (que, de igual modo encarcerada com D.
Sebastião, perece com ele na fuga da Torre de Belém); temos o peso da
religião e a presença da Inquisição na figura de um inquisidor-mor; e na
cena final com o vislumbre no horizonte da chegada da frota espanhola,
antevê-se o desfecho das relações políticas entre Portugal e Espanha com
a perda da independência do país. Escrita em primeira mão em francês,
foi feita a versão em italiano, “Sebastiano, Re di Portogallo”,
e de seguida em alemão. Correu mundo com muito êxito, e chegou também a
Lisboa, onde foi estreada, no ano seguinte, em 1844, no antigo Palácio
Barcelinhos (hoje o edifício do Centro Comercial dos Armazéns do
Chiado), tendo merecido Donizetti um título honorífico, agraciado por D.
Maria II.
Data da mesma época o início da composição de “L’Africaine”
de Giacomo Meyerbeer (1791-1864), o afamado compositor de grand opera
francesa que relata os atribulados episódios da viagem de Vasco da Gama à
Índia. Com a colaboração do libretista Eugène Scribe, o mesmo de “Dom Sébastien”
que já adaptara ao canto, a peça de teatro de Foucher, deitaram mãos à
empreitada em 1837. Contudo, o trabalho interrompido sistematicamente
por largos períodos foi terminado apenas dias antes da morte do
compositor, vindo a revelar-se a última ópera desta vez de Meyerbeer.
Pelo caminho, acrescentaram e modificaram muitas cenas: de acordo com o
diário, a 21 de outubro de 1850, Meyerbeer lia, encantado, a primeira
tradução em francês de “Os Lusíadas” datada de 1735, na
qual se inspirou para recriar o gigante Adamastor e o naufrágio do navio
no III ato. A ópera chegou inclusive a mudar de título para “Vasco da Gama”,
mas ao ser estreada após a morte do compositor recuperou o incongruente
nome inicial de “A Africana”, que remete para a personagem feminina
principal, Selika, uma escrava de nome árabe, que nasceu na Índia (e que
apaixonada por Vasco de Gama vai morrer de amor depois de o ver
partir). Tal como sucedeu com “Dom Sébastien”, “L’Africaine”
foi cantada e encenada em inúmeras salas de teatro de ópera, sendo
estreada em Lisboa, no Teatro São Carlos, em 1869, para grande gáudio da
intelectualidade da época, quatro anos após a estreia parisiense.
Se
autores estrangeiros celebraram a nossa portugalidade (e Donizetti de
modo peculiar, ao criar de carne e osso a personagem Camões, uma vez que
é ‘o’ barítono), muitos compositores portugueses também assim o
fizeram. Em 1819, numa manobra de marketing absolutamente comum e
aceitável, João Domingos Bomtempo dedicava a Camões uma missa de
defuntos para solistas, coro e orquestra, pensando tirar dividendos
financeiros para a edição da partitura impressa em Paris. Confessava
numa carta: “Compus duas missas, uma das quais de Requiem consagrada à
memória de Camões, que, espero, me seja mais produtivo que tantas obras
dedicadas a homens ainda vivos, os quais, até ao presente, não me foram
de grande utilidade.” Atravessava-se um período de renascimento
camoniano com a edição ilustrada de “Os Lusíadas” pelo Morgado de Mateus, em Paris, em 1817, e o “Requiem”
foi possivelmente iniciado por esta altura, estreado na cidade francesa
em 1818 e executado de novo em Londres em 1819, data em que o autor o
dedica “à memória de Camões” para reforçar o ensejo na publicação em
papel, que viria a concretizar-se em 1820, em Paris.
Bomtempo,
o mais reconhecido compositor português da época, repartiu a vida de
pianista virtuoso por estas três cidades, tendo-se instalado
definitivamente em Lisboa em 1820. Liberal convicto, com a instauração
do regime absolutista de D. Miguel em 1823 viu-se forçado a um exílio na
embaixada da Rússia que durou cinco anos. Com o triunfo da causa
liberal retomou a vida profissional ativa e foi nomeado por D. Maria II
para o cargo de diretor do Conservatório Real de Música, em 1835. Numa
tentativa de superar o atraso musical em que o país se encontrava,
investe na música instrumental e é estimado como o introdutor da
sinfonia em Portugal. Apesar de tudo, o “Requiem” op. 23, “à memória de Camões”, é uma das suas obras-primas.
Cerca de 60 anos depois o esforço de Bomtempo foi compensado por Vianna da Motta, que compõe, em 1894, a “Sinfonia à Pátria”.
Considerada a primeira grande sinfonia portuguesa de cariz
beethoveniano, mas já influenciada quer pela linguagem do romantismo
mais tardio de Liszt e de Wagner quer pelo nacionalismo musical, é uma
obra de síntese extraordinária, como se a grande preocupação de Vianna
da Motta fosse a de recuperar todo o tempo perdido. A “Sinfonia à Pátria”
é inspirada em Camões e três dos quatro andamentos que constituem a
obra fazem alusão a versos do poeta. O primeiro de carácter bélico é um
grito patriótico: “Dai-me agora um som alto e sublimado,/ Um estilo
grandíloquo e corrente;/ Dai-me uma fúria grande e sonorosa,/ E não de
agreste avena ou frauta rude,/ Mas de tuba canora e belicosa,/ Que o
peito acende, e a cor ao gesto muda.” (“Lusíadas”, I – 4, 5). O
andamento lento, expressivo, faz jus ao soneto “Eu cantarei de amor tão
docemente”, no qual explora “Pintando mil segredos delicados”, uma
infinidade de belas matizes tímbricas. O Scherzo é o único em que Vianna
da Motta não parte de Camões, mas faz uso de temas populares,
procedimento habitual das correntes nacionalistas. O quarto e último
andamento, o mais espetacular, reparte-o em três secções intituladas de “Decadência – Luta – Ressurgimento”.
Apesar do peso a que reporta os versos do poema épico em que se
inspira, termina com uma mensagem de otimismo e esperança num verdadeiro
apelo ao rejuvenescimento da alma lusitana.
Luís
de Freitas Branco aventurou-se a escrever um dos géneros musicais mais
comuns do tempo de Camões por terras estrangeiras: à imagem do madrigal
maneirista italiano que dava uma expressão cantada a versos dos mais
eruditos poetas italianos (Petrarca, Tasso), compôs um conjunto de três
ciclos de poemas, o primeiro para coro misto a capella e os outros para
coros de vozes iguais, num total de 28 peças a que chamou de “Madrigais Camonianos”.
Com base em sonetos e redondilhas, musicou por exemplo “Esta cativa” e
“Verdes são os campos” para quatro vozes. É sobretudo na área do
reportório para canto e piano que muitos compositores puseram em música
os versos ritmados, sonantes e cantáveis da lírica de Camões, como
Croner de Vasconcelos, Joly Braga Santos, Fernando Lopes Graça e
Alexandre Delgado, entre muitos outros. Importa, no entanto, referir
ainda a ópera “O Canto da Ocidental Praia” de António Vitorino de
Almeida, as “Sinfonias Camonianas” de Ruy Coelho, a “Evocação dos Lusíadas” op. 19 de Vianna da Motta, “Sete Predicações de ‘Os Lusíadas’” de Lopes Graça e “Dece do Ceo”
de Eurico Carrapatoso como provas da inesgotabilidade fonte inspiradora
camoniana. Para a celebração atual da efeméride, o compositor César
Viana escreveu a ópera “O Último Canto – Camões e o Destino” que será estreada no dia 10 de junho, às 17h, no Centro Cultural Olga Cadaval em Sintra (entrada livre).
Mas
a vasta e inigualável mestria poética de Camões tem-se prestado para um
diálogo fecundo noutras áreas da música dita não clássica. Em 1965,
Amália Rodrigues gravou um disco de 45 rotações com música de Alain
Oulman, consolidando o trabalho que já havia iniciado com este
compositor. Foi o álbum “Amália Canta Luís de Camões”, no
qual deu voz a ‘Erros Meus’, ‘Lianor’ (“Descalça vai para a fonte”) e
‘Dura Memória’ e cujas harmonias complexas e densas de Oulman arrancaram
definitivamente o fado à raiz popular. A ousadia de trazer para o fado a
literatura portuguesa do poeta maior não foi, na época, inteiramente
bem acolhida, pois a densidade dramática tanto da música como do texto,
em consonância com a interpretação de Amália, não correspondia a um
protótipo de fado mais ligeiro e ‘castiço’ que certo público tanto
apreciava. “Com que Voz”, o álbum bastamente premiado de 1970,
reafirmaria o interesse da cantora pela grande poesia, cantando temas de
autoria de Oulman com textos de Camões, Alexandre O´Neill, David
Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Manuel Alegre, entre outros. Mas o
tempo tem vindo a provar a absoluta versatilidade deste reportório que é
hoje interpretado de múltiplas formas e que tem sido até explorado e
improvisado ao piano por Mário Laginha, João Paulo Esteves da Silva ou
Júlio Resende, abandonando-se o mais tradicional acompanhamento de
guitarra portuguesa e viola dedilhada.
A
chamada música de intervenção do pré e do pós-25 de Abril também cantou
o poeta quinhentista. José Mário Branco, em plena luta contra o regime e
exilado em França, em 1971, lançou o álbum mais emblemático que trouxe
para a ribalta a contundente canção ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades’ — um grito convocatório de mudança ‘branco-camoniano’! José
Afonso, um excelente letrista, além de um compositor notável, promoveu
‘Verdes são os Campos’, uma das mais belas canções portuguesas de
sempre. Pegou ainda em ‘Na fonte está Lionor’ e em ‘Aquela cativa’, a
intensa canção conhecida por ‘Endechas a Bárbara Escrava’ que já Freitas
Branco tinha empregue num madrigal polifónico a quatro vozes.
Aliás,
“Na fonte está Lionor” é cantada há quase 500 anos, pois juntamente com
‘Foi-se gastando a esperança’ e ‘Menina dos olhos verdes’ são poemas
que aparecem em versões polifónicas de autores anónimos no “Cancioneiro de Paris”,
uma das mais tardias coletâneas de canções profanas da segunda metade
do séc. XVI; uma outra musicada, mas também de autoria incógnita, é o
soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”, que consta num manuscrito da
Biblioteca Nacional de Madrid. “À pintura que fala” (“Lusíadas”,
VIII, 41), continuemos, pois, a cantá-la, a dar-lhe dupla voz por esse
mundo fora... quem sabe outros voos, apregoando aos sete ventos o quão
Camões espelha a nossa identidade.
Teresa Castanheira. Revista E. Semanário Expresso, 6 de junho de 2024
Amália Canta Luís Vaz de Camões - "Com que voz chorarei meu triste fado"
Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.
Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
triste quero viver, poi se mudou
em tisteza a alegria do passado.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.
De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.
Camões
Camões 500
Comentários
Enviar um comentário