Sugestão de leitura | A maior mulher moderna do mundo

 






A Maior Mulher Moderna do Mundo, o novo volume da coleção de literatura "A vida privada dos livros", dirigida por Alberto Manguel, é a autobiografia ficcional de uma mulher gigante real do século XIX, Anna Swan, que encontrou a emancipação e a celebridade apresentando-se ao mundo em espetáculos de «aberrações».

"Quando comecei a escrever a história de Anna, as minhas experiências humilhantes ajudaram‑me a compreender o que ela sofreu. Sabia que estava a contar uma história na perspetiva de uma mulher cujo tamanho descomunal até os cavalos assustava, como se dizia na época vitoriana. Toda a gente a avaliava através da lente do seu tamanho, e também ela devia ver o ambiente físico em seu redor através dessa lente", escreveu a autora Susan Swan no Posfácio à Edição Portuguesa.


Excerto

CAPÍTULO 5 - DORES DE CRESCIMENTO

Em 1859, aos treze anos, media quase dois metros e treze. Tinha seis irmãos e irmãs mais novos, que eram baixos: a Janette, oito anos; a Maggie, seis; o George e a Mary, três; e o John, quatro. Liza tinha acabado de nascer. Vivíamos como sardinhas em lata numa casa com um andar e meio que, durante os meses de Verão, era quente e poeirenta, por nas cercanias não haver árvores que dessem sombra. Eu transpirava abundantemente. No Inverno, tiritava por causa das correntes de ar que conseguiam sempre infiltrar‐se, independentemente do número de vezes que o meu pai revestia os lados da casa com zostera.

Não me queixava, porque os meus irmãos e irmãs estavam pior. Tinham de aguentar comigo e com as minhas saias amplas, e viam‐se obrigados a dormir em cima de um fardo de palha, à frente da lareira. Eu e os meus pais éramos os únicos membros da família que tinham direito a uma cama. Éramos demasiado pobres para termos muita mobília — além de uns poucos bancos e uma tábua áspera e nua, em cima da qual consumíamos uma dieta constituída por peixe e batatas cozidas, usando colheres e facas de chumbo moldadas a partir de aros de ferro‐velho.

Por ser tão alta, não conseguia estar de pé dentro de casa. A choupana não passava de um cubículo grosseiro para alojamento das crianças; não se adequava às minhas medidas — para sair e entrar pela porta da frente, tinha de me curvar. Preferia estar no exterior, ao ar livre, porque aí podia levantar a cabeça e afastar os ombros para trás, sem receio de atravessar o teto.

A minha mãe defendia‐me.

— Alex, a Anna é boa rapariga, mas a catraia não tem espaço para viver dentro desta casa!

O meu pai acabou por abrir uma janela em meia‐lua na parede da choupana, por cima da porta da frente. Não passava de uma abertura debaixo do telhado, mas, pelo menos, graças a ela via a minha família a trabalhar nos campos, na encosta mais abaixo.

Se na choupana a vida era desconfortável, na escola era uma desgraça. Tinha de me sentar num banco alto e de trabalhar numa mesa instalada em cima de umas tábuas. Na sala de aula, via os meus colegas de cima, sentados em bancos compridos. Mais do que o meu tamanho, este assento distinguia‐me dos outros: por causa disso, pensavam que eu era a preferida da professora e interpretavam os meus modos tímidos e inibidos como sinal de snobismo. Além disso, sentia‐me tristemente exposta aos olhares deles — como se tivesse o corpo coberto de verrugas e feridas infetadas. Tornei‐me profundamente insegura e não era raro regressar da escola com dores de cabeça.

A minha mãe mandava‐me deitar imediatamente e, se fosse necessário, pedia à Janette para fazer a pé o percurso de mais de nove quilómetros até ao regato do moinho, em busca de água doce da montanha, para matar a minha enorme sede. O meu apetite era mais difícil de satisfazer. Como ainda estava a crescer, num só dia ingeria a mesma quantidade de comida que a minha família devorava numa semana (mais tarde, o Barnum falaria de catorze quilos de batatas e dez de bacalhau). O esforço do crescimento deixava‐me exausta; percorria a choupana num nimbo de cansaço. Depois chegou a puberdade, que transformou o meu corpo numa massa turbulenta. Acima e abaixo do meu queixo, sopravam violentas tempestades. A minha garganta inchou, com um bócio do tamanho de um outeirinho; as minhas regiões centrais vertiam leite indesejado; e as minhas regras deixavam‐me num estado extemporâneo que me obrigava a dormir durante vários dias.

Reagi a estas atribulações refugiando‐me num mundo mágico só meu. Comecei a sentir‐me responsável pelo crescimento dos meus irmãos e a encarar a sua baixa estatura como um desafio pessoal. Não que o meu pai esperasse que eu cuidasse da carne da minha carne. Fi‐lo espontaneamente, por ainda não ter aprendido a desconfiar do mito do gigante forte. (Faz parte da vaidade dos grandes eles acreditarem na sua própria mitologia.) De noite, enquanto os meus irmãos dormitavam no fardo de palha à frente da lareira, eu cantava a canção de crescimento que adaptara de uma balada de amor gaélica. (Havia muitas baladas por onde escolher, já que os colonos do condado de Colchester acreditavam no provérbio das Terras Altas segundo o qual a música e o amor persistirão mesmo após o fim do mundo.) Durante o dia, cantava para eles da minha vigia por baixo do telhado, enquanto eles desempenhavam as suas tarefas no campo em baixo. Sempre que os meus irmãos se impacientavam e discutiam uns com os outros, vigiava‐os com ternura.

Aqui estou eu, no meu posto por cima da porta da choupana, no Verão de 1859. Época da debulha. A rapariga gigante, na sua moradia colonial. O pinho rebaixado da janela do sótão enquadra os meus olhos castanhos, tão sérios. Tenho um olho preguiçoso. Isto é, uma pálpebra mais descaída do que a outra — o que me dá uma expressão misteriosa. Além disso, tenho uma boca fina e um nariz romano. Teria ar severo, se não fosse a minha melhor característica: o cabelo ruivo‐escuro e brilhante, que se derrama até aos ombros, em cachinhos. Uso o cabelo volumoso em cima da cabeça, e prendo‐o atrás das minhas orelhas pequenas e delicadas. A minha mãe mandou vir o meu vestido de Boston; compra‐me um vestido novo todos os anos, apesar de a Janette se queixar de só receber farrapos para se vestir. Os meus vestidos são no estilo Princesa, de acordo com os modelos das gravuras de moda da Mr. Godey’s Ladies*, com corpetes justos que terminam em V na cintura, e saias evasês que escondem os meus sapatos feitos em casa. Gatinhando por baixo da bainha está um dos gémeos, a Mary, que reage à segurança da escuridão por baixo da saia sugando a ponta do meu sapato de couro de vaca. Quando me retraio, bato com a cabeça no teto da choupana. «Mãe!», choramingo. Ela aparece imediatamente. (No espaço exíguo da choupana, nunca anda muito longe.) Dando estalidos zangados com a língua, rasteja para baixo do meu vestido e puxa a bebé, que dá guinchinhos.

— Catraia malcomportada! Não tornes a incomodar a nossa Anna — repreende ela. Contornando a minha saia, leva para fora a Mary, e depois o George, o outro gémeo. A minha mãe olha de baixo e, vendo‐me a olhar de cima para ela, abana a cabeça. Por baixo da touca de pala, tem uma expressão cansada. — Ainda bem que tens ombros largos, Annabelle — exclama. — Por que outra razão te teria Deus feito tão grande, se não fosse para olhares de cima, com pena e compreensão, para os que são mais pequenos do que tu?

A minha progenitora debita este ideal cristão sem saber que, já de mim, tenho uma noção demasiado pesada dos deveres de giganta. Anos depois, vendo os anões de Londres que Dickens descreveu num famoso texto, não senti mais do que inveja das criaturinhas que corriam pela sala de estar e pelos quartos das suas casas de bonecas de oitenta centímetros, disparando armas, hasteando bandeiras e entoando cançonetas. Dentro destas casinhas minúsculas, os anões não viam o público; por isso, não sentiam a menor responsabilidade em relação aos normais; aliás, ouvindo as risadas de prazer que as suas palhaçadas suscitavam, devem ter pensado que todos os outros seres eram almas despreocupadas, que não sofriam como os monstros. Eu, pelo contrário, facilmente percebia que os normais eram vulneráveis. Por esse motivo, durante muitos anos, senti a obrigação de cuidar deles.

Nessa manhã de Agosto de 1859, ainda não tinha aprendido como era difícil ser gigante. Rejubilava com as minhas responsabilidades superiores. A altura era não só a minha religião mas também a minha política, porque acreditava que, se toda a gente fosse alta como eu, ninguém seria infeliz nem se sentiria pouco importante. Dó‐ré‐mi! Aqueço a voz e sorrio com benevolência pela vigia. Há agitação em torno dos meus joelhos: a Janette, uma criança robusta, de braços fortes e rechonchudos, implora que a libertem da tarefa de segar. Sol‐fá! Olho entusiasticamente para os vales revestidos de arbustos e inclino a cabeça para trás, de modo que este solo mágico se derrame para lá das casas de ripas impecáveis e dos rios sinuosos, até ao calor tropical da corrente do golfo do Atlântico. Se eu cantar com intensidade suficiente, a pequena Janette vai crescer!

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