Breve reflexão sobre a distância, os verbos e a maldade
Sobre a maldade que por aí anda, em formato coletivo ou em pura produção artesanal e individual.
1.
“Os últimos anos foram bons praticamente para toda a gente/ menos para os mortos.” - Joseph Brodsky
Em vez de observar os sujeitos praticantes da maldade, observar os verbos — eis uma recomendação possível, recomendação ético-linguística.
A maldade é, então, uma questão de análise de linguagem e não apenas de observação dos atos.
O mal está nos verbos e não nos sujeitos, poderia dizer-se, em modo de síntese.
O mal está nos verbos e não na predefinição, quase infantil, de sujeito mau ou bom. De ovelha ou lobo.
Porque se o sujeito, por ser “bom”, pode fazer tudo, então estamos bem tramados. O “bom” espanca, tortura e etc. porque está do lado certo. Conhecemos esta história. Aliás, esta é a história do humano e dos países. Não se conhece ideologia ou império que não se julgue, ou tenha julgado, no lado certo. Cada um autodesigna-se como portador da bondade e a partir daí pode sacar da pistola e da bola com picos à vontade.
A mudança na análise do mal pode ser, por isso, também linguística. Onde está o mal na gramática, na sintaxe? Onde está ele, o cheiro do diabo? Onde se localiza? Nos pronomes, nos substantivos, nos nomes próprios ou nos nomes coletivos, nos verbos, nos adjetivos, nos advérbios de modo, de lugar e de tempo?
A operação simples — para algo bem complexo, claro — é, então, deslocar a atribuição da maldade do sujeito para o verbo. Onde está o mal? Não está no lobo nem na ovelha, nem na erva comida pela ovelha. Está nos verbos.
Exemplo, um verbo evidente da maldade: torturar. Quem é o sujeito, o grupo, o país ou o império que tortura? Não importa. Tortura é um verbo do mal. O juízo sobre o mal pode ser, assim, no limite, um juízo não sobre as circunstâncias, de espaço e tempo, nem sobre os sujeitos envolvidos, mas um simples juízo sobre os verbos, sobre as ações. Eis uma hipótese.
Mas, claro, que nunca nada é assim tão simples. Há contextos e contextos, há sujeitos e sujeitos, há tempos que são diferentes de outros tempos. Evidente. Mas quando se desvaloriza os verbos e se entra na análise infinita dos contextos e dos sujeitos entra-se numa certa balbúrdia, no campo da discussão interminável.
Mas sim, poderemos dizer, de um outro ponto de vista: a discussão, o não perentório, é também o essencial da democracia e da lei – as atenuantes em crimes, por exemplo, representam um pouco isso. O que são as atenuantes? Além do verbo, da ação concreta, pode haver contextos — de modo, espaço, tempo, etc. — que atenuem o crime: roubar para comer versus roubar para enriquecer são dois exemplos bem evidentes do mesmo verbo com contextos absolutamente distintos — e que a lei julga, e bem, de maneira distinta (ou deveria).
O que é, então, a sensatez ética? Uma hipótese de definição, entre muitas outras: um olho bem fixo no verbo e o outro a observar os advérbios de modo, lugar e tempo, aplicáveis a cada sujeito ou grupo.
Talvez a grande questão, que fica de tudo isto, seja esta: há ou não verbos do mal sem atenuantes — como o verbo torturar ou assassinar? Verbos absolutos do mal?
Há, dizem uns. Não há, dizem outros. E a discussão vai continuar.
2.
Paralelamente a isto: como avaliar os acontecimentos explosivos das últimas semanas na política internacional? Como ver, como avaliar?
Distanciamento é um termo usado, entre outros, pelo escritor Bertolt Brecht e, como alguns pensadores esclarecem, distanciar “não é colocar longe”, não é “perder de vista à força do afastamento”, pelo contrário, a distância permite “aguçar o olhar” e é, por isso, “uma operação do conhecimento”.
Se estás muito perto, demasiado perto, ficas ceguinho — todos temos essa experiência. Com o olho encostado ao quadro, o quadro desaparece. Uma venda junto aos olhos, cega-nos. Uma venda afastada dois metros dos olhos, é uma venda, bem clara, bem evidente, que não nos cega.
Para ver algo, então, de forma nítida, é necessária uma distância. Qual? Nem pouca, nem demasiada. Cada um encontrará os metros necessários ou os dias necessários (pois a distância também pode ser temporal) para ver e perceber melhor um acontecimento.
A grande dificuldade de comentar e julgar diariamente o que acontece no vasto mundo é, então esta: estamos sempre demasiado longe do acontecimento (em termos espaciais) e estamos sempre demasiado perto do acontecimento (a nível temporal).
Na língua portuguesa, aliás, utiliza-se com frequência o “ver” e “perceber” como sinónimos. “Estás a ver isto?” “Já viste bem isto?” Expressões que significam, em muitos casos: “Estás a perceber isto?” Já percebeste?”
Assim, a questão é: quantos metros de distância precisas para ver/ perceber claramente uma ação ou um acontecimento?
Quantos dias, semanas ou meses necessitas para ver/perceber claramente uma ação ou um acontecimento?
3.
De alguma maneira, o juízo sobre a maldade ou bondade de uma ação necessitaria também desta distância ideal — no espaço e no tempo. Só se percebe a absoluta maldade de um verbo/ação, ou as suas atenuantes, por via de uma distância ética ajuizada.
Ou seja, fazermos um juízo crítico sobre qualquer acontecimento é sempre uma precipitação. Mas não há alternativa, senão a mudez.
Falemos, então.
Gonçalo M. Gonçalves. Revista E, Semanário Expresso, 26 de julho de 2024
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