“Eles passarão, eu passarinho”

 









Uma pessoa pode ser livre num espaço que lhe é imposto, mas isso talvez não seja liberdade.



“A cidade muda mais rápido, ai de mim!, que o coração de um mortal”
- Baudelaire




Vestido de branco, em contraste com todos os músicos da orquestra e com o maestro, um dançarino de hip-hop subiu ao palco de um concerto de música clássica e pôs-se a dançar.

A música, que nasceu para ser dançada na rua, subitamente entra nas salas de espetáculo mais fechadas e onde os movimentos são mais controlados.

Movimentos que vêm dos bairros pobres entram na sala mais rica.

2.

É certo que os habitantes da cidade circulam pelos espaços públicos todos, mas nem todos os espaços públicos são, apesar de tudo, acessíveis.

Pensar, por exemplo, em quantas pessoas nunca entraram num grande teatro público.

3.

Uma pessoa pode ser livre num espaço que lhe é imposto, mas isso talvez não seja verdadeiramente liberdade.

Pensando de uma forma extrema, é como se alguém nos dissesse: sê livre nestes cinco metros quadrados.

Ou um pouco como dizer a um prisioneiro que pode fazer o que bem quiser — mas na sua cela, claro.

De facto, quando se é livre num espaço que não se escolheu, talvez não se seja livre. Daí a importância da participação dos cidadãos nas mudanças urbanas.

A democracia é não apenas poder decidir livremente, dentro das leis, o que fazer no espaço privado e no espaço público, é também poder decidir sobre a forma do espaço privado — de que cor pintar as paredes do meu quarto — e, também, não esqueçamos, sobre a forma e conteúdo do espaço público.

O “direito à cidade” é uma ideia antiga, mas ganhou carácter quase de exigência com o livro de Henri Lefebvre, de 1968, “Le Droit à la ville” — e ultimamente esse direito recuperou a sua energia de reivindicação.

David Harvey, um polémico teórico das geografias urbanas de Cambridge, diz que o “direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual para ter acesso aos recursos urbanos”. Trata-se, acima de tudo, de um direito coletivo a “dar nova forma ao processo de urbanização”. O direito “a fazer e refazer as nossas cidades” é, defende David Harvey, um dos direitos humanos “mais negligenciados”. Muitas cidades, aqui e por todo o mundo, cada vez possibilitam mais a entrada dos cidadãos na escolha do que fazer aos espaços coletivos. E não é por acaso.

Há quem defenda mesmo que a cidade contemporânea “é um campo de batalha”, um campo de batalha entre argumentos, mas não só.

De qualquer maneira, por vezes, o direito à cidade é isto: dançar hip-hop num concerto de música clássica, mas também levar, por exemplo, música clássica às ruas onde se dança hip-hop ou às aldeias mais longínquas. A aldeia tem também direito à cidade; e a cidade, claro, direito à aldeia.

4.

Lembro, a este propósito, os versos do “Poeminha do contra”, do poeta brasileiro Mário Quintana:

“Todos esses que aí estão 

Atravancando meu caminho, 

Eles passarão, 

Eu passarinho!”

Fazendo uma interpretação bem livre destes versos, outra hipótese contemporânea, então, cada vez mais comum, seria: fugir dos campos de luta da cidade para os espaços onde quase não existem humanos em redor. E enquanto na cidade se combate ideologicamente, no meio da natureza, o humano, em solidão escolhida, dorme ao ar livre uma boa sesta: “Eles passarão... eu passarinho!”

Optas pela luta ou pelo passarinho, eis uma questão possível.

5.

Da cidade para o aeroporto, espaço de transição entre duas cidades. (E não espaço de transição entre dois cantos de passarinho.)

No aeroporto, inúmeros viajantes com livros na mão.

“Quando viajo, preciso de levar um livro para ler antes de adormecer. O livro é uma cama linguística em que encontro sempre o sono.” Isto escreveu Paul B. Preciado, que, a este propósito, lembrou o filósofo Derrida, que dizia que “o livro era uma pirâmide portátil”, aludindo ao povo judeu, que, “ao fugir do Egito, tinha transformado a arquitetura em papiro para poder levá-la sempre consigo”.

Paul B. Preciado, pensador sempre em trânsito — físico intelectual e geográfico —, assume-se, em qualquer viagem, como “um estrangeiro com um pequeno livro debaixo do braço”; o livro como a sua pátria, portanto. Se nos tiram o livro, tiram-nos a nossa pirâmide portátil, a nossa Torre Eiffel portátil, o nosso Coliseu portátil, a nossa Rua Augusta portátil — e a nossa língua.

6.

O direito à cidade, o direito ao livro, o direito ao passarinho.

No verão, para o bem e para o mal, a vontade de luta pelo direito à cidade parece diminuir. “Procura fazer o menos possível na máxima quantidade de tempo”, aconselhava o filósofo.

Gonçalo M. Tavares. E-Revista, Semanário Expresso, 6 de julho de 2024


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