Leitura | Entrevista a Pedro Sobral, Presidente da APEL






"Estamos finalmente a adquirir hábitos de leitura", diz Pedro Sobral, presidente da APEL. Mas ainda há muito por fazer









Num cenário de crescimento no primeiro semestre de 2024, o setor do livro continua a enfrentar desafios - sobretudo em Portugal. [...] O Expresso ouve agora, em exclusivo, Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, para saber que medidas públicas seriam necessárias para assegurar e alavancar um setor que atravessa um momento positivo, mas que parte “de uma base muito baixa”.


A venda de livros aumentou 7% em 2023. Qual é o estado de saúde do sector?


Neste momento, no fim do primeiro semestre, o mercado apresenta um crescimento de 9%. É um bom sinal, significa que o mercado continua a evolui favoravelmente. Os motores deste aumento são a ficção e a literatura infantojuvenil. E é curioso que se verifique nas livrarias, e não nos supermercados. Desde o confinamento que assistimos à criação de uma nova vaga de leitores, sobretudo das faixas etárias mais jovens, entre os 15 e os 24 anos. Fala-se muito do movimento Tik Tok e da forma como as pessoas redescobriram a leitura, mas isso é tendencial. No caso português, parece que finalmente estamos a adquirir hábitos de leitura, em especial nos mais novos, e isso advém da preocupação dos pais e cuidadores em envolvê-los na experiência da leitura e da compra do livro. São boas notícias, estamos a criar estes leitores e a crescer neste campo, mas também é verdade que partimos de uma base muito baixa. Estamos ainda muito longe de sermos um mercado como o alemão, o francês ou mesmo o espanhol. É essa base baixa que mais nos preocupa.


Quais são as razões para este crescimento?


É um fenómeno global. Começa como um escapismo durante o confinamento. Fala-se de livros nas redes sociais e estes adquirem visibilidade. Desde Gutenberg que sabemos que um livro, quando acerta na pessoa certa, promove a repetição da experiência de leitura, o hábito. Há uma diferença relativamente ao que acontecia antes do confinamento: as conversas sobre as leituras passaram a ser redes sociais, impactando muita gente. Esse é um acelerador, que trouxe um volume enorme de pessoas.


Diz estar preocupado com a ‘base baixa’ de onde partimos em termos de leitura em Portugal. Pode explicar melhor esta ideia?


É um problema estrutural, que tem origem num período ditatorial muito longo onde a liberdade não existia, e em que a censura e a prisão eram as ferramentas para calar aqueles que queriam ser livres-pensadores. Tivemos demasiadas gerações sob essa manta de chumbo, e apesar da evolução extraordinária que houve continuamos a ter muitas famílias com muitas dificuldades financeiras – entre 20 e 30 por cento – que não podem comprar livros. Apesar de o índice de alfabetismo ser ínfimo no Portugal de hoje, temos índices de literacia muito baixos. Isso está preso às condições económicas e à circunstância de o tempo – e a leitura leva tempo – ser ocupado pelo trabalho. A educação tem dado passos, mas continuamos a ter muitos agregados familiares que não têm rendimento suficiente para aceder à leitura. E as bibliotecas, que podiam colmatar essa falta, estão cronicamente suborçamentadas.


Que medidas poderiam facilitar o acesso ao livro?


As redes sociais funcionam como um acelerador, mas também são uma moda, uma tendência. Por isso precisamos de políticas públicas. E entre as medidas que, na nossa opinião, poderiam ser estruturais, está a de orçamentar convenientemente as bibliotecas, tanto escolares quanto municipais. As bibliotecas permitem um acesso universal ao livro e estão presentes em zonas onde por vezes não há livrarias. Têm bibliotecários, que são mediadores especializados, e podem ajudar a encontrar o livro certo. Outra medida importante é o cheque-livro – um voucher de 20 euros, destinado a cidadãos de 18 anos que residam em Portugal, para comprar livros em qualquer livraria do país (não online). Se aqueles miúdos e miúdas que através do Tik Tok são influenciados recebem um voucher para comprar um segundo livro, a probabilidade de continuarem a ler é muito grande. Em França, a maioria do ‘cheque-cultura’ é gasto em livros. O mesmo se verifica em Espanha.


O Governo prometeu revisitar a Lei do Preço fixo do livro. Seria um passo importante?


Esta lei tem de ser revista à luz do que é o mercado atual. A que está em vigor foi feita à revelia da APEL e criou distorções absurdas, como passar de 18 para 24 meses. Por outro lado, não tem em conta todo o mercado de players online não sediados em Portugal que praticam preços substancialmente inferiores aos dos livreiros portugueses, não permitindo uma concorrência leal e igual. Em geral, estes players globais não são livreiros nem têm como objetivo que os portugueses comprem livros mais baratos. Por vezes, nem sequer pretendem lucro na compra de livros. O que querem acima de tudo é capturar dados e informação dos compradores para depois vender aos portugueses outro tipo de produtos. Por este motivo, não têm problema algum em destruir o ecossistema do livro. Estamos a estudar e a criar uma proposta para entregar ao Ministério da Cultura (MC), em diálogo com todo o setor.


O MC disse querer apostar numa transição digital que valorize o e-book e o audiobook. Qual é a posição da APEL?

Em Portugal não há um mercado de conteúdos digitais. Mas é importante ter conteúdos em formato digital. A digitalização de catálogos, quer em audiobook quer em ebook, é muito baixa, por isso seria importante criar apoios para que essa transição seja feita. Os apoios que existem têm de ser utilizados, porque não têm tido taxas de resgate muito elevadas. Nisso estamos de acordo com a ministra.


Outro aspeto é a questão dos direitos autorais no que toca à Inteligência Artificial. O que tem de mudar neste campo?


Somos totalmente apoiantes do Ato IA, que a UE comunicou. Sabemos que ele será a base das normativas europeias que irão regular a IA. E logo no primeiro ponto refere que qualquer tipo de algoritmo que utiliza dados com direitos autorais tem de os remunerar. Hoje em dia, os editores têm modelos de remuneração disponíveis para que essas grandes empresas se sentem connosco, com objetivo de negociar direitos de autor e de edição. Gostaríamos de trabalhar com o MC para ver como podemos sancionar ditas violações e auditar estes sistemas de forma a garantir que estão a cumprir com a lei.


O que pensa dos anunciados apoios à tradução de obras portuguesas para outras línguas?


Repare, o contrário já está a ser feito pelos países de origem. Hoje temos mais traduções de obras neerlandesas, sul-coreanas ou suecas justamente porque os países de origem apoiam as traduções. O Governo português, para promover a língua portuguesa, terá de fazer o mesmo. Ficamos muito felizes quando a ministra disse que quer promover a língua portuguesa. Este é um dos temas que vamos abordar, porque quanto maior apoio houver mais possibilidade têm os editores portugueses de convencer os estrangeiros a investir nos nossos autores. No fundo, trata-se de pegar em políticas que funcionam noutros países e replicá-las por cá.


Como é que a APEL reage ao fecho sucessivo de livrarias independentes?


Esse é outro apoio importante que pode ser pensado do ponto de vista das medidas públicas e estruturantes. Não gosto do conceito de subsidiação, mas sim de facilitação, como, por exemplo, o aluguer de espaços bem localizados a rendas simbólicas para instalar uma livraria, ou a suspensão de certas obrigações fiscais nos primeiros dois anos para ajudar economicamente o arranque. Estes negócios têm sempre o problema do curso das rendas e das obrigações fiscais fixas, independentemente das receitas. Nestes casos, mais do que de apoios, falamos de incentivos.

Luciana Leiderfarb. E-Revista, Semanário Expresso, 6 de julho de 2024. 


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