Camões, que sabemos nós?



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Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”, de Isabel Rui Novo, e “Camões — Vida e Obra”, de Carlos Maria Bobone: duas biografias de Luís de Camões vieram à luz em ano de (presumível) efeméride. Mas como separar a mitologia dos factos?

Há muitas coisas que não sabemos sobre a vida de Camões. Em contrapartida, sabemos imenso sobre a sua psicologia — se é que sabemos. Nos seus poemas, em especial a lírica, há lamentos sobre amores mal sucedidos, azares da fortuna, desconcertos do mundo, misérias da vida, etc. Que alguns dos versos mais notáveis onde ele exprime esses sentimentos (“o dia em que nasci morra e pereça”, “Alma minha gentil que te partiste”) copiem parcialmente textos preexistentes — seja o livro de Job, poemas de Petrarca ou textos de autores romanos — não exclui forçosamente a autenticidade emocional. Quase toda a gente se lamenta com palavras alheias, de uma forma ou outra. Mas é legítimo especular se não existe às vezes um elemento de encenação literária.

O pouco que conhecemos da vida de Camões chega para entender que foi complicada, mas os detalhes concretos das situações são quase sempre irrecuperáveis. Camões teria eventualmente estado preso por se haver apropriado de bens que pertenciam a herdeiros quando exerceu o cargo de provador dos defuntos em Macau. Apropriou-se mesmo? Se sim, do quê? Foi vítima de inimigos ou rivais? Talvez de alguma confusão? Se mesmo hoje, com pessoas vivas e escutas em full-time, é com frequência impossível chegar à verdade em situações desse tipo, muito mais o será em relação a acontecimentos do século XVI. No limite, o facto de Camões se lamentar em versos sublimes não é absolutamente conclusivo sobre a sua verdade ou sinceridade, portanto sobre sentimentos individuais. Em condições normais, estes últimos já são a proverbial barreira intransponível para biógrafos de qualquer espécie e lugar. Tratando-se de Camões, a dificuldade é multiplicada. 


FORTUNA, CASO, TEMPO E SORTE
Isabel Rio Novo
Contraponto, 2024, 727 págs.




No 500º aniversário da presumível data do seu nascimento (outra incerteza essencial), dois grandes grupos editoriais portugueses publicam livros importantes sobre o poeta. A professora, investigadora e ficcionista Isabel Rio Novo assina “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”, uma ambiciosa biografia com 700 páginas. Por sua vez, o crítico, alfarrabista e também autor Carlos Maria Bobone publica “Camões — Vida e Obra”, com cerca de 400 páginas. 

Não nos falta material para ferrar o dente, e de algumas coisas podemos ter certeza. Desde logo, que Camões, embora de origem nobre, era pobre. Isso nada tem de surpreendente, pois a pobreza, então como agora, era um título acessível a pessoas que tinham outros mais lustrosos. Bastava serem, por exemplo, segundos filhos ou filhos de segundos filhos. Camões teve sempre que fazer pela vida. Enquanto nobre, não lhe deve ter passado pela cabeça trabalhar em atividades como o comércio, e a solução natural seria uma carreira militar, de preferência gloriosa, que inscrevesse o seu nome entre os varões ilustres de um reino que no momento do seu nascimento já se estendia pela África, a Ásia e o Brasil. A este último ele nunca foi, mas o seu conhecimento de África, e sobretudo da Ásia, não consente dúvidas. Uma primeira experiência em Ceuta deixou más recordações (o seu olho direito terá sido lá perdido, num acidente ou durante uma refrega, conforme as versões) e Camões só voltou a partir anos depois, na sequência de um ato de violência que o levou à cadeia, iniciando uma estadia de quase duas décadas no Oriente que lhe forneceu material para o seu grande poema épico, mas que, como quase tudo na sua vida, terminou mal para ele pessoalmente.

Sobre muito do resto, incluindo episódios famosos como o do naufrágio, a mitologia sempre foi à frente da informação. Isabel Rio Novo tem consciência das dificuldades, mas acha que não são obstáculo para escrever uma biografia de Camões. Neste trabalho que lhe levou cinco anos, a sua abordagem foi assimilar todos os documentos e o que foi dito e especulado sobre o poeta, distinguindo o certo do incerto e do apenas possível. Isso deixa espaço para q.b. de especulação — e de recriação. Aqui entram em jogo os recursos literários da romancista que ela também é. A utilização abundante de fórmulas como “terá”, “deve ter sido”, etc., marca a fronteira do que não se conhece e não só proporciona explicações plausíveis como dá uma ideia mais viva, talvez uma empatia maior, da presumível experiência de Camões nos lugares e situações relatadas.




CAMÕES — VIDA E OBRA
Carlos Maria Bobone
D. Quixote, 2024, 413 págs.



Carlos Maria Bobone é mais limitado na sua ambição biográfica, que de resto considera largamente inviável em relação a Camões, dada a escassez de documentos autênticos (uma dezena ou menos) e o volume de incertezas. O seu livro, embora tenha subjacente um esqueleto de cronologia, é estruturado sobretudo em torno da obra camoniana. Eis como ele próprio o descreve: “Não será certamente uma biografia e só num sentido muito lato poderá ser considerado um trabalho de crítica literária. Haverá alturas em que se aproximará da História das mentalidades, outras em que se assemelhará a um estudo psicológico e outras em que o foco estará na beleza [...]. Isto exigirá que nos lancemos por vezes para fora dela — quer no encalço daquilo que ela sugere, quer em busca dos elementos necessários para mergulhar nela — e que noutras tentemos focar-nos nos aspetos mais circunscritos e formais dos poemas”.

O programa é cumprido de forma competente, com dissecações percetivas que nos devolvem o interesse por alguns poemas ou nos descobrem outros, e ficamos com a vantagem de dispor de duas abordagens diferentes e alternativas. O último capítulo de “Camões — Vida e Obra” antes do epílogo é dedicado às redondilhas de Babel e Sião, onde Camões escreve: “Vi que todos os danos/ se causavam das mudanças/ e as mudanças dos anos;/ onde vi quantos enganos/ faz o tempo às esperanças”, fazendo-nos pensar que, antes das mudanças de lugar ou de fortuna, havia as mudanças de humor, e não raro eram essas o fator determinante.

Admitindo que os lamentos postos em verso são genuínos, podemos explicá-los apenas pelas dificuldades objetivas da vida de Camões — que aliás bastam para os justificar, e encontramos ecos delas no início da obra de outro famoso viajante português desse tempo, Fernão Mendes Pinto (“com muita razão me posso queixar da ventura, que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me...”) — ou havia algo na sua particular maneira de ser que o predispunha à desgraça? É mais uma instância em que a resposta parece ser dada pelo próprio Camões. Erros seus, má fortuna, amor ardente parece explicação mais provável do que unicamente fortuna, caso, tempo e sorte. Uma vez mais, que sabemos nós. Se Camões tinha uma deformação psicológica qualquer, devia ser do tipo que é comum a todos nós, embora muitos o ignoremos.

O homem que imaginava a amada falecida “lá no assento etéreo onde subiste” era também o que frequentava lupanares e escreveu aquelas extraordinárias passagens de manha erótica que aparecem no canto nono de “Os Lusíadas”. Prazer, glória e desgraça. No final, segundo Pedro de Mariz, citado por Rio Novo, Camões “viveu em tanta pobreza que se não tivera um jau, chamado António, que da Índia trouxe, que de noite pedia esmola para o ajudar a sustentar, não pudera aturar a vida”. O episódio é plausível, diz a biógrafa.

Luís M. Faria. Revista E, Semanário Expresso, de 1 de agosto de 2024.

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