O ateliê vermelho

 


“L’Atelier rouge”, de Henri Matisse, 1911





Um círculo virtuoso: trazer emoção e imaginação às cores 
e às formas, fazer de ambas um campo emotivo e imaginativo


Em 1909, Henri Matisse deixou o seu estúdio em Monmartre e instalou-se em Issy-les-Moulineaux, a poucos quilómetros de Paris, com a mulher e os filhos. Procurou e encontrou uma villa com um grande jardim e muita luz. E deu indicações precisas, hoje preservadas, sobre como devia ficar esse lugar, que era mais do que uma casa com um ateliê anexo: era um novo mundo, depois de ter pintado tantos anos em mansardas parisienses. Em 1911, por encomenda do seu mecenas russo, Matisse executou três quadros, que o mecenas, achando-os insuficientemente representativos, recusou. O mais clamoroso dos três, “L’Atelier rouge / O Ateliê Vermelho”, recupera, ao jeito antigo, outros quadros e trabalhos, desenhos, esculturas, no total de 11. Os quadros são um moinho corso que visitou na lua-de-mel no Mediterrâneo, uma mulher nua fauvista, um jovem marinheiro ao mesmo estilo, banhistas à Cézanne com zonas do quadro não pintadas, três mulheres nuas gigantes e não-europeias, uma natureza morta com um cíclame, e um outro nu que mais tarde mandou destruir. É um pequeno museu privado que vai do pitoresco e sentimental ao intimista e ao ousado (o quadro das três mulheres, “Le Luxe II”, lembra algumas mulheres dos poemas de Baudelaire).

Há três coisas extraordinárias nessa enorme tela em que Matisse retratou o seu estúdio, com os móveis, os objetos e as obras. A primeira é que todos os quadros representados sofreram pequenas alterações, porque eram agora quadros-no-quadro, já não objetos autónomos, e as alterações serviam o conjunto, mais do que emendarem os originais. A segunda, primeira em importância, é que depois de terminar o quadro, o arista decidiu recobri-lo, “não sei exatamente porquê”, com uma cor uniforme, um “vermelho Veneza”, a que chamou um “estado avançado de vermelho”. A terceira é que por debaixo do vermelho avançado, os traços originais das coisas são contornos feéricos, como uma fotografia em negativo, uma técnica de mostrar a verdade.

Existem assim simultaneamente e quase monocromaticamente um relógio alto e o moinho corso, as cadeiras e as mulheres fauvistas, o vaso e o copo e o marinheiro, as esculturas e os desenhos, as banhistas à Cézanne e uma lâmpada, as três mulheres nuas gigantes e uma janela e uma natureza morta com cíclame. Simultaneamente continuam a ser aquilo que eram, na sua existência original como quadros, desenhos, esculturas, como móveis e coisas, com as cores e superfícies que conhecemos ou intuímos, mas que ganham nova vida naquele vermelho unânime, “um pouco mais quente que o ocre vermelho”, um vermelho-paraíso, escarlate, exultante e resguardado, que Matisse considerava uma “noite quente”, mas que parece um tempo mais indefinido, nem dia, nem noite, um entardecer, talvez, amável mas vibrante.

A exposição “Matisse: L’Atelier rouge”, atualmente na Fundação Louis Vuitton, em Paris, mostra um monarca e o seu cortejo: “O Ateliê Vermelho” rodeado, como convidados especiais, dos quadros, esculturas e desenhos que o integram. O equívoco sobre a “representação” começa aí. De facto, o quadro de 1911 representa outros quadros, mas reinventa-os, não os copia, como reinventa o ateliê, não deixando de o representar, como representa o conjunto dessas coisas materiais recobertas com uma cor que torna irrelevante, imaterial, a questão da representação, ou seja, da parecença, da distância, da perspetiva, fazendo da pintura o que ela é, cosa mentale. É por isso natural que o quadro tenha sido incompreendido, rejeitado pelo colecionador, recebido com indiferença ou troça em Nova Iorque no Armory Show, em 1913, e depois meio esquecido nas paredes de um nightclub londrino, até ser adquirido pelo MoMa em 1949.

É possível, mesmo provável, que alguns dos artistas que mais lucidamente resolveram a questão da “representação” o tenham feito através da cor, Nicolas de Staël, Philip Guston, Giorgio Morandi de modo austero, Mark Rothko radical e quase teológico, só para nomear alguns dos que mais gosto. Numa entrevista de 1942, discutindo o lugar da pintura depois da fotografia e do cinema, Matisse explicou: “Eles [os artistas] são úteis pelo que podem juntar à cor e à forma pela riqueza da sua imaginação intensificada pela emoção (…). Por conseguinte, só precisamos daqueles pintores que têm o dom de transmitir os seus sentimentos íntimos em termos de cor e de forma.” Um círculo virtuoso: trazer emoção e imaginação às cores e às formas, fazer de ambas um campo emotivo e imaginativo. O que é “O Ateliê Vermelho” senão o esplendor dessa ideia?

Pedro Mexia. Revista E, Semanário Expresso, 26 de julho de 2024


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