Até isso é Ilusório

 






Uma das primeiras observações intrigantes sobre Kafka que li ou ouvi foi de George Steiner, que o definia como um autor do Antigo Testamento. A fórmula impressionou-me e convenceu-me, dada até a minha preferência vetero-testamentária (a salvação é uma hipótese, a danação uma certeza).

Na verdade, mais do que escritos bíblicos, certas prosas kafkianas parecem comentários talmúdicos, glosas ou distinções ou extrapolações ou boicotes. Ou, então, apenas “investigações autobiográficas”. Por isso, em Kafka, sempre me tocaram particularmente os fragmentos, as anotações, as cartas, entradas de diário, os aforismos. Alguns desses textos estão incluídos em “Parábolas e Fragmentos”, com escolha, tradução e prefácio de João Barrento. É Barrento quem começa por nos lembrar que a parábola é uma figura geométrica aberta e uma narrativa comparativa. E o fragmento que introduz a colectânea discute se as parábolas, que trazem a sabedoria dos antigos, têm ou não “utilidade” para a nossa vida, ou se nos dizem que “o inexplicável é inexplicável, e isso já nós sabíamos”. Ou seja, em Kafka até a discussão sobre parábolas é uma parábola.

Os textos breves deste volume assumem diferentes naturezas, uns existenciais, outros jurídico-paródicos, outros teológicos, e assim por diante. Entre as parábolas existenciais ou quotidianas está uma sobre não ficar em casa ao serão, em família, como de costume, e reconhecermos, com essa saída intempestiva, “que afinal temos mais força do que necessidade para provocar e suportar facilmente a mais súbita das transformações”, sendo que o texto termina com necessidade mas sem transformação ou consolo. Uma outra prosa curta, em torno de um dos temas kafkianos por excelência, diz que a um homem solteiro pode faltar convívio, companhia na doença, e que tem de “levar o jantar para casa numa das mãos”, mas que ainda assim mantém uma “cabeça a sério”, e “uma testa para bater com a mão nela”, remate que nos deixa a bater com a mão na testa. Outra narrativa dá voz a um pai que descreve, critica e elogia em detalhe os seus 11 filhos, incluindo um “fraco” e “delicado” (quem será?), uns só com defeitos e outros com virtudes que soam a defeitos (é uma “carta do pai” que joga com a célebre mas nunca entregue “Carta ao Pai”). Há também um enigmático “examinador”, mais policial do que escolar, a quem o examinando chama “tio”, laço que este nega veementemente (uma farsa freudiana?). E num outro exame, proclama-se: “Aquele que não responde às perguntas passou no exame”.

Esta última frase parece ser a melhor resposta ao “enigma” das parábolas kafkianas. Algumas, as “existenciais”, são fulgurantes ou inquietantes. Um sujeito deambula pela cidade com “a força de convicção do ar depois da trovoada” e acha o seu passado e futuro excelentes, até que, regressado ao seu quarto fica apreensivo “sem que (...) tenha encontrado o que quer que seja digno de apreensão”. Um passageiro num eléctrico confessa-se “completamente inseguro quanto ao meu lugar no mundo” e não compreende porque é que nem toda a gente sente o mesmo. Um indivíduo corre atrás de outro à noite, sem sabermos se se trata de um assalto ou de uma brincadeira. Um polícia aconselha ao transeunte que lhe pergunta uma direcção: “desiste, desiste” (ou, como esclarece outro fragmento: “Aquilo a que chamamos caminho é hesitação”).

Às parábolas jurídico-paródicas já me referi noutras crónicas, porque me ajudaram em anos difíceis. A mais extraordinária é a do cidadão que espera a vida inteira diante da porta da Lei, sem que nunca o deixem entrar, e antes de morrer pergunta enfim porque é que, se toda a gente procura a lei, nunca ninguém tentou entrar senão ele, ao que um guarda responde: “Ninguém mais podia entrar por aqui, porque esta entrada estava-te destinada só a ti. Agora vou fechá-la.” Mas também há “Bucéfalo”, o cavalo favorito do Imperador Alexandre da Macedónia que, sem Alexandres nem Macedónias disponíveis, se reconverteu em advogado, o Dr. Bucéfalo. E outros casos práticos e teóricos: uma hipotética pancada no portão de uma quinta punida como um grave delito; os senhores A e B dos exemplos académicos que eu abominava, aqui divertidamente desencontrados nos seus negócios; as leis que existem mas ninguém conhece, ou pseudo-leis, ou leis que na verdade nem sequer existem.

Por fim, as parábolas teológicas ou pós-metafísicas. São as mais instáveis de todas, alicerçadas não no pessimismo, mas no desengano, não no niilismo, mas na impossibilidade de estabelecer um sentido. O avô que diz que o tempo é tão curto que nunca compreendeu como é que um jovem não receia que a cavalgada até à aldeia vizinha possa demorar a vida toda. O mensageiro imperial que, após a morte do imperador nem consegue encontrar a saída do palácio, quanto mais entregar as últimas vontades do monarca. Ulisses que tapa os ouvidos com cera para não ser seduzido pelo canto das sereias, sem se aperceber que para ele, o astucioso Ulisses, as sereias não cantarão (metade Homero, metade Eliot). A Torre de Babel que nunca será concluída porque “o essencial desta empresa é a ideia de construir uma torre que chegue até ao céu. Perante uma ideia destas, tudo o resto é secundário”. Ou a tese de que fomos expulsos do paraíso não por causa do pecado original, mas para que não provássemos da árvore da vida. E há ainda estas árvores, e cito na íntegra: “Pois nós somos como troncos de árvore na neve. Temos a impressão de que assentam sobre ela, e que com um pequeno empurrão seríamos capazes de os deslocar. Não, não somos capazes, porque eles estão firmemente presos à terra. Mas — quem diria? — até isso é ilusório.

Pedro Mexia. Revista E, Semanário Expresso, 6 de setembro de 2024


Comentários