Fernando Pessoa encontra H.P. Lovecraft

 

Um filme de Edgar Pêra feito com Inteligência Artificial


"Cartas Telepáticas", de Edgar Pêra

"Cartas Telepáticas", de Edgar Pêra


Fernando Pessoa (1888-1935) e Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foram contemporâneos, morreram quase com a mesma idade, mas nunca se conheceram. O maior vulto da literatura portuguesa do século XX e um dos mais proeminentes autores do terror gótico do mesmo século nunca se aproximaram nem trocaram (pelo menos que se saiba) qualquer correspondência. Ambos tinham uma fixação pelo futuro, pelo oculto, e os pontos em comum entre o português e o americano não se ficam por aqui. Ambos cultivaram heterónimos mas não consta que alguma vez tenham sequer lido alguma coisa um do outro. Só que em “Cartas Telepáticas”, novo filme “inacabado” (sic) de Edgar Pêra em que é difícil destrinçar quem rege a orquestra, se o realizador se as máquinas, Pessoa e Lovecraft (duas influências-chave na obra do cineasta) trocam cartas e ensaios, poemas, ficções e demais galhardetes, além-Atlântico e além-tumba, com toda a liberdade que a ficção permite, num filme com imagens de gente ‘que não existe’ e que nunca assim foi vista, pese embora as semelhanças que possam ter com a realidade.

Não haja dúvidas: na base do filme estão Pessoa, Lovecraft e textos soltos de ambos que Edgar Pêra colocou em rota de colisão (algo já ensaiado em “Caminhos Magnétykos”, de 2018). O trabalho que agora vai ser mostrado pela primeira vez em solo luso (após a estreia no Festival de Locarno, na Suíça) é uma consequência coerente do filme anterior do realizador, um dos seus melhores, por sinal, “The Nothingness Club — Não Sou Nada”, que foi pessoano até à medula. Acontece que, tal como tanta vez sucedeu nesta obra, o ‘gostar’ e o ‘não gostar’ escoam para espaços ambíguos e a questão que se coloca ao espectador é outra: o que é que se passa aqui? Pêra “abriu uma nova porta e entrou em território desconhecido” (citamos o diretor do Festival de Locarno quando apresentou o filme no mês passado), coisa febril e, em certa medida, ingrata para quem assina um trabalho com esta tipologia, porque a autoria perde o controlo, tem que se habituar ao caos, corre o risco de ser devorada. “Só posso dizer-vos que, quando começarmos o debate, vou ter mais perguntas a fazer do que respostas a dar”, lançou Pêra à audiência.






As imagens do filme foram geradas por algoritmos (palavra que mete medo...) e “Cartas Telepáticas” também é isso, um combate com o algoritmo — tudo o que se vê foi gerado pela máquina a partir de instruções que a mesma pesquisou (Pessoa, Lovecraft, Lisboa, Nova Iorque, anos 30, film noir, etc.). O som, esse sim, é ‘humano’. Às vozes dos intérpretes de carne e osso (Keith Esher Davis, Iris Cayatte, Bárbara Lagido, Victoria Guerra...) juntou-se Artur Cyaneto, que para quem não sabe é o compositor alter ego do cineasta desde “A Janela (Maryalva Mix)” (2001). Na imagem, temos pois um Pêra a desbravar caminho, e só não se arrisca dizer que esta é a primeira longa-metragem (70 minutos) da história do cinema em IA porque não sabemos quem partiu primeiro, se o português, se o veterano alemão Alexander Kluge, também ele um pioneiro incansável, e que explorou este procedimento noutro filme estreado no início deste 2024 (em Roterdão), “Cosmic Miniatures”, a partir da “canina batalha intergalática” iniciada pela viagem ao espaço da cadela “Laika”. Em Locarno, Pêra apresentou a “versão 23” de “sCartas Telepáticas”, que considerou ser a melhor para aquela data (mas nem por sombras a definitiva; quem segue esta obra conhece a sua mutação constante). Logo deu a dita “versão 23” azo a elucubrações sobre as propriedades do 23 (que além de ser um número primo é o número favorito de Edgar) enquanto Rodrigo Areias, produtor do filme pela Bando à Parte, tentava trazer acalmia à discussão: “E que também trabalhamos há 23 anos juntos...”

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Hipótese lançada por “Cartas Telepáticas”: a IA é o que a maioria dos humanos for. No fundo, há sempre alguém atrás da máquina. Se a obsessão humana for temerária, se “a máquina tiver que enfrentar a nossa maluquice”, não é a máquina que vence. “Mas há que aproveitar agora porque a época de ouro da IA está a acabar”, também acrescentou Edgar, “vai ficar cada vez mais perfeita e chegará a um ponto em que não terá piada nenhuma. Deixará de poder ser domesticada. Esta ideia de variações, de multiplicação, é o que me interessa mais e tem muito que ver com o meu trabalho, com os heterónimos e a própria IA. Digo sempre que, muito antes do Facebook, já o Fernando Pessoa tinha os seus perfis falsos... E, sejamos honestos, isto também tem muito que ver com a banda desenhada. Com o Lego. Com o pingue-pongue. E com o judo, na filosofia de usarmos a força do oponente! O meu cinema é feito assim, de reflexos, de reação às coisas.”



Cartas Telepáticas, de Edgar Pêra
Vozes de Iris Cayatte, Keith Esher Davis, Victoria Guerra, Bárbara Lagido (Portugal)
Drama/Biografia (classificação a definir)

Francisco Ferreira. Revista E, Semanário Expresso, 6 de setembro de 2024

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