Fernando Pessoa encontra H.P. Lovecraft
Um filme de Edgar Pêra feito com Inteligência Artificial
Não haja dúvidas: na base do filme estão Pessoa, Lovecraft e textos soltos de ambos que Edgar Pêra colocou em rota de colisão (algo já ensaiado em “Caminhos Magnétykos”, de 2018). O trabalho que agora vai ser mostrado pela primeira vez em solo luso (após a estreia no Festival de Locarno, na Suíça) é uma consequência coerente do filme anterior do realizador, um dos seus melhores, por sinal, “The Nothingness Club — Não Sou Nada”, que foi pessoano até à medula. Acontece que, tal como tanta vez sucedeu nesta obra, o ‘gostar’ e o ‘não gostar’ escoam para espaços ambíguos e a questão que se coloca ao espectador é outra: o que é que se passa aqui? Pêra “abriu uma nova porta e entrou em território desconhecido” (citamos o diretor do Festival de Locarno quando apresentou o filme no mês passado), coisa febril e, em certa medida, ingrata para quem assina um trabalho com esta tipologia, porque a autoria perde o controlo, tem que se habituar ao caos, corre o risco de ser devorada. “Só posso dizer-vos que, quando começarmos o debate, vou ter mais perguntas a fazer do que respostas a dar”, lançou Pêra à audiência.
As imagens do filme foram geradas por algoritmos (palavra que mete medo...) e “Cartas Telepáticas” também é isso, um combate com o algoritmo — tudo o que se vê foi gerado pela máquina a partir de instruções que a mesma pesquisou (Pessoa, Lovecraft, Lisboa, Nova Iorque, anos 30, film noir, etc.). O som, esse sim, é ‘humano’. Às vozes dos intérpretes de carne e osso (Keith Esher Davis, Iris Cayatte, Bárbara Lagido, Victoria Guerra...) juntou-se Artur Cyaneto, que para quem não sabe é o compositor alter ego do cineasta desde “A Janela (Maryalva Mix)” (2001). Na imagem, temos pois um Pêra a desbravar caminho, e só não se arrisca dizer que esta é a primeira longa-metragem (70 minutos) da história do cinema em IA porque não sabemos quem partiu primeiro, se o português, se o veterano alemão Alexander Kluge, também ele um pioneiro incansável, e que explorou este procedimento noutro filme estreado no início deste 2024 (em Roterdão), “Cosmic Miniatures”, a partir da “canina batalha intergalática” iniciada pela viagem ao espaço da cadela “Laika”. Em Locarno, Pêra apresentou a “versão 23” de “sCartas Telepáticas”, que considerou ser a melhor para aquela data (mas nem por sombras a definitiva; quem segue esta obra conhece a sua mutação constante). Logo deu a dita “versão 23” azo a elucubrações sobre as propriedades do 23 (que além de ser um número primo é o número favorito de Edgar) enquanto Rodrigo Areias, produtor do filme pela Bando à Parte, tentava trazer acalmia à discussão: “E que também trabalhamos há 23 anos juntos...”
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Hipótese lançada por “Cartas Telepáticas”: a IA é o que a maioria dos humanos for. No fundo, há sempre alguém atrás da máquina. Se a obsessão humana for temerária, se “a máquina tiver que enfrentar a nossa maluquice”, não é a máquina que vence. “Mas há que aproveitar agora porque a época de ouro da IA está a acabar”, também acrescentou Edgar, “vai ficar cada vez mais perfeita e chegará a um ponto em que não terá piada nenhuma. Deixará de poder ser domesticada. Esta ideia de variações, de multiplicação, é o que me interessa mais e tem muito que ver com o meu trabalho, com os heterónimos e a própria IA. Digo sempre que, muito antes do Facebook, já o Fernando Pessoa tinha os seus perfis falsos... E, sejamos honestos, isto também tem muito que ver com a banda desenhada. Com o Lego. Com o pingue-pongue. E com o judo, na filosofia de usarmos a força do oponente! O meu cinema é feito assim, de reflexos, de reação às coisas.”
Cartas Telepáticas, de Edgar Pêra
Vozes de Iris Cayatte, Keith Esher Davis, Victoria Guerra, Bárbara Lagido (Portugal)
Drama/Biografia (classificação a definir)
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