Conhece-te a ti mesmo, cuida de ti mesmo, ou seja: compra!








Saiu do autoconhecimento estoico diretamente para o spa, com mensalidades em conta. “Cuida de ti mesmo” é o lema agora de qualquer ginásio, spa ou edifício de massagens.

O “conhece-te a ti mesmo” passou dos sábios gregos para os anúncios de televisão. Ou a televisão e a publicidade se elevaram, em séculos, para um patamar onde o humano reflete sobre o essencial — morte, amor, doença, desejo, etc. — ou a velha frase foi armadilhada com o moderno dinamite da superficialidade.

1.

O “cuidar de si próprio”, escuta-se tanto esta frase que vem dos sábios gregos. O “conhece-te a ti mesmo” é um prefácio do “cuida de ti mesmo”. Não há terapia sem diagnóstico; toda a cura parte de um conhecimento. Isso é evidente. O médico que não saiba a localização e anatomia dos rins é bem capaz de operar inadvertidamente o saudável fígado de um desgraçado doente.

Mas, sim, o “cuidar de si próprio” já não é, no geral, um cuidar da sua cabeça, dos seus instintos e dos seus planos, já não é o cuidar da sua disciplina e o treinar e o aperfeiçoar das potências de cada um. Se podes fazer algo, se fazes alguma coisa bem, diria um grego dos antigos, então cuida de ti mesmo de forma a apurar o que fazes, de maneira a fazeres o mesmo cada vez melhor. Mas sim, o lema “cuida de ti mesmo” já não é, na publicidade — essa forma de pensamento primário, mas sedutor, que ocupou o espaço central — já não é, então, um tratar do seu jardim mental com cuidados de jardineiro sábio. O “cuidar de si mesmo” passou para a pele e aí ficou; o cuidar de si mesmo saiu da filosofia e entrou na cosmética. Saiu do autoconhecimento estoico diretamente para o spa, com mensalidades em conta. “Cuida de ti mesmo” é o lema agora de qualquer ginásio, spa ou edifício de massagens.

Transformou-se no mantra da época do espelho que grava. Porque o ecrã do telemóvel é um pouco isso: um espelho onde a nossa imagem não desaparece quando nos afastamos. Fica gravada e vai connosco. E seria, nesse sentido, interessante pensar na invenção da fotografia e do cinema, e como, desde o início da história destas duas artes, captar imagens foi captar o exterior, o que estava à nossa frente. A primeira fotografia do mundo e a primeira filmagem dos irmãos Lumière não foram selfies e seria importante perceber quando é que aconteceu esta viragem da câmara para o próprio portador do aparelho; quando é que as máquinas de filmar e fotografar se transformaram em espelhos.

Mas, claro que podemos sempre argumentar noutra direção. A história da arte está cheia de autorretratos. Os pintores clássicos já estavam obcecados por si, pelo seu rosto e pelo seu corpo.

2.

Paul Valéry dizia que não tínhamos apenas o polegar oponível, tínhamos também “a alma oponível”; essa alma que estava localizada de frente para nós, ligeiramente afastada como o polegar em relação aos outros dedos, a ver-nos à distância. Temos o polegar oponível e temos a alma oponível. E somos humanos também por isso (ou talvez apenas por isso). O polegar oponível permite-nos manipular objetos, a alma oponível permite-nos essa coisa estranha, sedutora e assustadora ao mesmo tempo: conseguimos ver-nos a nós próprios — e não apenas a visão superficial no espelho, se temos borbulhas ou rugas, olhos excitados ou cansados. Conseguimos olhar para nós de fora, vivemos e vemos a nossa vida como se estivéssemos, ao mesmo tempo, no chão da vida e num helicóptero com a melhor das vistas para as nossas ações e pensamentos. Olhamos para nós como um juiz de existências ou apenas de atos. Como se esta alma oponível, esta parte de nós que é um vigia virado para dentro, fosse uma parte de nós mais velha e mais sábia. E essa segunda parte mais sábia, esse vigia instalado à nascença no nosso próprio corpo, vai dizendo, sugerindo, por vezes ordenando: sim, não, para a frente, para trás; e avaliando: gosto do que estou a fazer, não gosto; que disparate que fiz, vou em frente ou não? E etc.

3.

A tão batida frase de Pessoa — “Sê todo em cada coisa” — expressa uma grande dificuldade de base, pois estamos sempre de fora da nossa vida a ver-nos viver. Estamos sempre divididos em dois, portanto — e nunca inteiros: eu sou aquele que faz e aquele que se vê a fazer. Somos aquele que tem a máquina de filmar e somos aquele que se filma. Filmo-me — eis uma expressão que é bem mais antiga do que a câmara de filmar.

A dificuldade de sermos um, a angústia de não conseguirmos ser um. Eis um outro problema humano que nenhuma crónica, claro, consegue resolver.

4.

Mas voltemos aos lemas que circulam pelas infinitas páginas das redes sociais e pela publicidade a qualquer produto — quer seja um carro, um creme para as rugas ou uma viagem a Paris. “Conhece-te a ti mesmo”, “cuida de ti mesmo”. Ou seja: compra!

Gonçalo M. Tavares, Revista E, Semanário Expresso, 2 de outubro de 2024

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