Mafalda, a eterna contestatária

 




Há personagens imortais, e esta é uma delas. A menina contestatária criada por Quino na Argentina teve na verdade uma curta vida de nove anos. Mas hoje continua viva como nunca, e em toda a parte


Filho de dois andaluzes que emigraram para fugir à Guerra Civil de Espanha, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932. Joaquín Salvador Lavado Tejón começou a desenhar muito cedo por influência de um tio pintor, também ele chamado Joaquín Tejón, o que deu origem, para os distinguir, ao nome abreviado do mais novo elemento da família. Depois de uma passagem pela Academia de Belas Artes de Mendoza, Quino decide que quer fazer banda desenhada, apostando no registo humorístico, e começa a bater à porta das redações de vários jornais e revistas de Buenos Aires, cidade onde acabará por se instalar em 1954. Entretanto, cumpre o serviço militar e é nesse ambiente que começa a ganhar consciência social e política, como dirá mais tarde em várias entrevistas, ao conviver com camaradas de diferentes estratos sociais. Começa a publicar banda desenhada no semanário “Esto Es”, e depois estende a sua colaboração a vários outros jornais e revistas. Nessas páginas que inauguram a sua extensa carreira, o humor é já uma forma de pensamento, sempre alicerçado na reflexão sobre o mundo, as relações humanas, os conflitos e as pequenas travessias do quotidiano.

A par da imprensa, Quino trabalha igualmente em publicidade. Estamos no final da década de 1950 e a vocação para o trocadilho, as imagens certeiras e a punch line é amplamente apreciada por várias marcas que contratam os seus serviços. É nesse contexto que Mafalda faz a sua primeira aparição. A Agens Publicidad procura um desenhador para criar uma tira para uma nova linha de eletrodomésticos, a Mansfield, e é o escritor Miguel Brascó quem sugere à agência o nome de Quino, cujo trabalho acompanhava de perto. As exigências da campanha são simples: a personagem deve ter um nome começado por M, como a marca, e as tiras de banda desenhada devem ter um estilo que as aproxime da linha de “Blondie”, de Chic Young, e “Peanuts”, de Charles M. Schulz, duas bandas desenhadas norte-americanas que faziam sucesso também na América do Sul. As tiras desenhadas por Quino acabam por não ser usadas, mas algumas delas são publicadas no “Gregorio”, suplemento humorístico da revista “Leoplán”, em 1964, e depois instalam-se como residentes regulares no semanário “Primera Plana”, de Buenos Aires. Mafalda tinha chegado ao mundo e o mundo não mais haveria de viver sem a sua perspicácia, umas vezes envolta em ternura infantil, outras num agudo sarcasmo.

Entre 1964 e 1973, Mafalda tem residência fixa nos jornais argentinos “Primera Plana”, “El Mundo” e “Siete Dias”. Nas primeiras histórias, as personagens que a rodeiam não vão muito além do núcleo familiar, mas com o passar do tempo Quino sentirá necessidade de criar outras, dando corpo a um mundo cada vez mais completo. Filipe, Manelito, Susaninha e Miguelito, mas também o irmão Gui ou a amiga Liberdade, vão fazendo a sua entrada em cena, cada um refletindo características que permitem a Quino enriquecer substancialmente os argumentos.

Mafalda tinha chegado ao mundo e o mundo não mais haveria de viver sem a sua perspicácia, umas vezes envolta em ternura infantil, outras num agudo sarcasmo

Mafalda é sempre protagonista, mas as personagens que a rodeiam são fundamentais para a construção de um universo narrativo complexo, cheio de camadas e segundos sentidos. O ódio à sopa torna-se imagem de marca da protagonista, criando uma das tantas leituras múltiplas que Mafalda permite: por um lado, é enternecedor e gera-se uma certa solidariedade por parte do leitor, que terá tido os seus ódios infantis; por outro, a sopa vai-se revelando metáfora para as crises, golpes de estado e mudanças de Governo a que a Argentina assiste por estes anos, a caminho da ditadura, bem como para os cenários não muito diferentes que iam marcando a paisagem política da América Latina. Em entrevistas posteriores, Quino assumirá essa interpretação que cola a sopa à agitação política e concretamente à ditadura, transformando o grito de ódio de Mafalda perante o prato com o líquido fumegante num gesto universal, partilhável por todos os que acreditam nas vantagens da democracia.

Curta vida para tão grande personagem

Quando Quino começa, aos poucos, a anunciar a vontade de se despedir de Mafalda, a notícia não é bem recebida. Estamos em 1973 e as tiras da menina contestatária começam a espalhar-se por outros países da América Latina e pela Europa. Os leitores de Quino não compreendem a decisão e os seus colegas estranham que o autor queira abandonar uma personagem que se revelava, nessa altura já muito claramente, um filão editorial que podia durar toda uma vida. Ainda assim, Quino não abdica da sua decisão. Está cansado de desenhar aquelas personagens e não quer sentir que se repete, ou que baixa, de algum modo, a fasquia.

Por outro lado, nesse mesmo ano, a ditadura instalou-se no Chile e era impossível, como disse o autor várias vezes nos anos seguintes, que Mafalda continuasse a existir sem a comentar. Numa entrevista ao jornal espanhol “20 Minutos”, em 2014, Quino disse que se Mafalda não desaparecesse, teria de sair da Argentina: “Se continuasse a desenhá-la, davam-me um tiro, ou quatro...”


[..,]
rês anos depois, Quino e a sua mulher, Alicia Colombo, mudam-se mesmo para Milão. O autor continua a trabalhar nas suas bandas desenhadas, publicando na imprensa e em livro: “Artes e Partes”, “Penso, Logo Existo” ou “Quinoterapia” saíram nos anos seguintes, confirmando-o como um dos grandes autores do século XX. Mafalda deixou de viver novas histórias, mas foi chegando a cada vez mais leitores, espalhados por diferentes geografias. Na verdade, o desaparecimento da personagem teve algumas exceções. Em 1977, o autor volta a dar vida a Mafalda e companhia, ilustrando a Declaração dos Direitos da Criança e oferecendo o trabalho à UNICEF. Em 1986, cede alguns desenhos para promover a primeira eleição dos Conselhos de Escolas, em Espanha. E em 1987, o cantor catalão Joan Manuel Serrat, que tem em Quino um dos seus muitos admiradores, pede ao argentino que lhe desenhe alguma coisa com a Mafalda para o seu disco “El Sur También Existe”. Quino acede, mas um mal-entendido em torno de prazos acaba por deixar a última tira original de Mafalda fora do disco.

Toda a Mafalda

Em Portugal, é logo em 1970 que a Dom Quixote publica o primeiro livro de Mafalda, reunindo um conjunto de tiras cuja leitura terá, certamente, iludido a censura, incapaz de ver ali mais do que uma narrativa infantil. Ganharam os leitores. Depois de várias edições portuguesas ao longo das últimas décadas, a Iguana publica agora uma nova edição de “Toda a Mafalda”, reunindo a totalidade das tiras desenhadas por Quino, organizadas cronologicamente e devidamente enquadradas por um conjunto de textos onde se traça a história das personagens, as suas aparições e o percurso geral desta figura a quem o seu autor deu curta vida — apenas nove anos — mas que por mérito próprio se libertou do desaparecimento. Além das tiras publicadas na imprensa, “Toda a Mafalda” inclui também os trabalhos posteriores em que Quino voltou a dar vida à personagem, uma série de homenagens de outros desenhadores e o registo do sucesso de Mafalda pelo mundo, quer sob a forma de livros, quer através dos filmes animados que entretanto se fizeram.

Sara Figueiredo Costa, Revista E, Semanário Expresso, 1 de outubro de 2024

Comentários