O que é que Clarice Lispector tem?
“Esperar o enredo. Escrever sem prémio. Abolir a crítica que seca tudo”: o que é que Clarice Lispector tem?

Aos 23 anos, o primeiro livro de Clarice Lispector caiu como pedrada no charco. Recebeu logo um prémio para melhor romance de estreia da Fundação Graça Aranha, arrecadando boas críticas. Um poeta, Lêdo Ivo, também cronista e tradutor, e que viria a ser membro da Academia Brasileira das Letras, qualificou “Perto do Coração Selvagem” como “a maior novela já escrita por uma mulher em língua portuguesa”. Mas a par da fascinação acontecia também a estranheza — que jamais abandonaria Clarice —, com um outro crítico e escritor, Sérgio Milliet, a aludir ao nome “estranho e desagradável” da autora, “possivelmente um pseudónimo”.
Clarice significava uma inflexão, embora não se soubesse para onde. Era estrangeira numa literatura que, então, seguia uma linha de afirmação geográfica, em busca de uma voz de contornos nacionais. “Aquele primeiro livro é diferente porque não segue essa linha da terra, dominante no Brasil. Mesmo os escritores próximos dela, de uma linha mais psicologista, estão enraizados nas referências territoriais. Ela não tem nada disso, e teria sido a via mais simples”, explica Carlos Mendes de Sousa, especialista em literatura brasileira e, em especial, na figura de Clarice Lispector, lembrando como, numa entrevista de 1960, a autora confessou ter-se sentido incomodada com o sucesso daquele primeiro livro, “porque não queria que o seu caminho fosse fácil”.
Este romance inaugural, acabado de lançar pela Companhia das Letras, faz parte de um conjunto de cinco títulos — quatro publicados em fevereiro e um previsto para outubro — que constituem, por sua vez, o início da edição das obras completas da autora. É descrito pela também escritora Susana Moreira Marques, num texto que o acompanha, como “um livro que, mais do que um romance de formação, como são tantas obras de estreia, biografa o futuro” de Clarice. E assinala a irrupção de um universo literário que pertence menos à história contada do que à reflexão que a subjaz, assim como a uma atenção extrema à palavra.
Dois anos antes de o escrever, Clarice — nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, filha de imigrantes judeus ucranianos que fugiram à guerra civil e aos pogroms com as três filhas atravessando a Moldova e a Roménia, aí embarcando para o nordeste do Brasil — havia enviado uma carta ao então Presidente Getúlio Vargas a pedir-lhe que acelerasse o seu processo de naturalização. Na missiva, descrevia-se como “uma russa de 21 anos de idade que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses”, e que “pensa, fala, escreve e age em português”.
Em 1968, publicaria no “Jornal do Brasil” uma “Declaração de Amor” à língua portuguesa, na qual meditava sobre “o verdadeiro desafio (desta) para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Ela não é fácil, não é maleável. (...) Às vezes reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes assusta-se com o imprevisível de uma frase”, continuava. Tendo começado a escrever os primeiros contos aos 19 anos, quando era uma das três mulheres estudantes de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e a única judia em todo o curso, foi também das primeiras mulheres a fazer reportagens nos jornais brasileiros. Em 1943, casou-se com o colega de faculdade e diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teria dois filhos, Pedro e Paulo. Estes nasceriam fora do Brasil, o primeiro em Berna e o segundo em Washington, duas das cidades onde Clarice viveu nos 13 anos em que acompanhou o marido no exercício da diplomacia, fixando-se também em Nápoles, Londres e Varsóvia, o mais próximo que alguma vez voltaria a estar de Tchetchelnik, a aldeia natal. Nessa altura, “escreveu uma crónica que falava da sensação de estar sozinha na varanda da casa em Varsóvia. Dizia algo como: ‘Uma grande floresta negra apontava-me o caminho da Ucrânia. Senti o apelo. Mas eu pertencia ao Brasil.’ É como se não quisesse aproximar-se da sua origem”, contou ao Expresso o filho, Paulo Gurgel Valente. Em 1956, quando regressou ao país, tinha já dado à estampa mais três romances, “O Lustre”, “A Cidade Sitiada” e “A Maçã no Escuro”, este último só publicado em 1961 e exemplo do profundo trabalho de reescrita a que Clarice se obrigava — recriando 11 vezes à máquina as suas quase 300 páginas. Usava uma Olympia e colocava-a ao colo, o que lhe permitia estar ubiquamente nos lugares que melhor a definiam: no meio dos filhos e absorvida pela escrita.
Cravar os dedos no pensamento
Não estava longe daquela que viria a ser a sua obra-prima. “Texto maior da literatura do século XX”, de acordo com Carlos Mendes de Sousa, investigador da Universidade do Minho, no posfácio, “A Paixão Segundo G.H.”, publicado em 1964 e outro dos romances acabados de reeditar por cá, é livre, abstrato, estranho e claustrofóbico. Ambientado no quarto de uma empregada que se acabou de despedir, e que a dona da casa se propõe arrumar, todo o livro decorre dentro desse espaço. Ali acontece o encontro com uma barata que jazia dentro do armário e que a protagonista colocará na boca, após a esmagar: “Sabia que teria que comer a massa da barata (...). Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil.” No posfácio, Mendes de Sousa afirma que “não há como negar uma aproximação” deste texto à “Metamorfose” de Franz Kafka. Até porque, tal como Kafka, Lispector crava os dedos no pensamento, tornando-o literatura.
“Ela não leu os filósofos. Os conceitos que aparecem na sua obra não são formulados de modo sistemático. Mas vai além deles”, comenta, notando como, no processo de escavação que a escritora empreende livro a livro, “demonstra como a literatura pode ir mais longe e mais fundo do que a própria filosofia”. Não é por acaso que Hélène Cixous, dramaturga e crítica literária francesa, a situa no quadro de figuras como Rilke, Heidegger, Rimbaud ou Kafka. Ou que, em 2013, o poeta Ferreira Gullar, então com 83 anos, nos disse: “Clarice é uma escritora reflexiva, que está sempre perplexa diante da vida e sempre indagando o seu sentido. Os seus romances são mais reflexão do que narração e quase não têm história. Parece que o assunto tratado é apenas pretexto para as suas reflexões, que decorrem da perplexidade.”
Benjamin Moser, autor da grande biografia de Clarice, “Why This World” — a edição portuguesa, de 2010, intitula-se “Clarice Lispector — Uma Vida” —, frisaria também ao Expresso o carácter inquisitivo, indagatório, da obra da autora: “Quando era pequena, ela disse que tinha uma pergunta muda e insistente: ‘como é o mundo?’ e ‘porquê esse mundo?’ São perguntas que, para vivermos a vida diária, não podemos fazer. Ela procurava constantemente. E levou essa procura tão longe que chegou ao ponto em que todos nos parecemos.”
“Género não me pega mais”
A seguir a “A Paixão Segundo G.H.”, publicou no mesmo ano “A Legião Estrangeira”. Esta coletânea de contos apresentava uma segunda parte denominada “Fundo de Gaveta”, que passaria a ser autonomizada por indicação da escritora, dando origem ao volume “Para Não Esquecer”, que a Companhia das Letras vai lançar em outubro pela primeira vez em Portugal depois de, em 2018, ter sido incluído em “Todas as Crónicas”, publicadas pela Relógio D’Água. Trata-se de um conjunto de fragmentos, relatos e anotações que Clarice unifica sob esta máxima: “Por que razão publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além de mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão.”
Em 1969, a aparição do romance “Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” não pode ser desligada de um evento angustiante e aterrorizador ocorrido dois anos antes, quando um incêndio deflagrou no seu apartamento do Leme, no Rio de Janeiro. A escritora adormecera deixando um cigarro aceso e o acidente provocou-lhe queimaduras graves, sobretudo numa das mãos. Este episódio sombrio terá marcado ainda a escrita de “Água Viva”, de 1973, agora reeditado, e do qual a docente universitária Joana Matos Frias, especialista em Teoria da Literatura, faz uma introdução considerando-o “um objeto tão dificilmente classificável que a própria autora chegou a qualificá-lo como um antilivro” e que “resulta da luta com a edição revista e abreviada de um original anterior, muito mais extenso”.
Segundo Carlos Mendes de Sousa, “Água Viva” é uma obra “dolorida, que reflete a insatisfação permanente de Clarice” e de que ela tarda em fixar a versão final. “Inicialmente era para se chamar ‘Atrás do Pensamento — Monólogo com a Vida’, que mudou depois para ‘Objeto Gritante’. O resultado acaba por decorrer de uma junção de textos escolhidos, muitos deles crónicas, cosidos com aspetos autobiográficos”, explica o investigador, salientando a exacerbada “dimensão fragmentária” do livro, presente, aliás, noutras obras da autora. É aqui que Clarice anuncia: “Género não me pega mais”, frase irmã de um fragmento que consta do plano para a revisão deste livro, exposto na Fundação Gulbenkian em 2013, na grande mostra sobre a escritora intitulada “A Hora da Estrela”: “Ler cortando o que não serve. Esperar o enredo. Escrever sem prémio. Abolir a crítica que seca tudo.”
Ia a caminho de uma simplicidade conseguida “através de muito trabalho”, como diria — e o corolário desta intenção seria o fito de cada vez escrever com menos palavras. “A escavação de Clarice tenta ir ao fundo das coisas. Não é uma dimensão psicológica, antes uma despersonalização: chegar a um ponto neutro e insosso, como a massa branca da barata”, observa Carlos Mendes de Sousa. Para ele, o fio condutor entre os cinco volumes lançados em 2025 é justamente o facto de nos guiarem ao longo de todo o percurso da autora, começando pelo princípio e acabando no seu único livro póstumo, “Um Sopro de Vida”, organizado por Olga Borelli, secretária e amiga de Lispector. “Este livro foi lançado em 1978 e hoje os leitores não sabem como é que apareceu, ou se estava ou não concluído. Naquela primeira edição havia uma nota de Borelli a assumir que Clarice o escreveu em simultâneo com ‘A Hora da Estrela’, o último romance de 1977, mas depois essa nota desapareceu. A forma como ela montou o volume é muito livre e levanta questões que só se compreendem acedendo aos manuscritos”, explica o professor, que trabalha numa futura edição da obra recorrendo aos manuscritos, restituindo-lhe assim a sua verdade.
“E agora?” Clarice passaria o fim dos seus dias a fazer esta pergunta. E a adiar a morte de Macabéa, a jovem protagonista de “A Hora da Estrela”. Ao longo de várias páginas, duvida se deixará a rapariga ali deitada na rua, depois de atropelada por um luxuoso Mercedes. Avisa que fará o possível para que não morra, mas “quem sabe se ela não estaria precisando de morrer?” Em outubro de 1977, a par da publicação do livro, a autora era internada com um cancro terminal. No táxi à ida para o hospital, diria a Olga Borelli: “Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris.” Alienação literária, que durou pouco. Fortemente medicada, acabaria por ditar: “Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.”
LEIDERFARB, Luciana, E-Revista, Semanário Expresso, 21 de fevereiro de 2025
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