Os avisos da História: como os fascismos se insinuam antes de invadirem tudo

Quem se habituou a ouvir Rachel Maddow nos seus programas da MSNBC não ficará surpreendido por esta jornalista de inteligência rigorosa e jovial, e de sólida capacidade analítica, que se (e nos) deleita a dissecar os absurdos da política americana, ter escrito, sem ser historiadora de formação, um livro invulgarmente bem informado e percetivo sobre uma fase da moderna História americana que deita luz sobre a situação atual desse país. Nos anos 1920 e 30, quando os fascismos estavam em ascensão na Europa, ocorreu nos Estados Unidos um processo que podia bem ter levado a um triunfo semelhante. Embora Maddow avise que a História não se repete — não, os nazis não estão aí outra vez — há suficientes elementos comuns para justificar preocupação.
O ressentimento popular contra elites supostamente privilegiadas e não patriotas que se projeta na vontade desenfreada de poder de líderes que entram no sistema político com a intenção expressa de o destruir a partir de dentro, valendo-se para tal do descrédito de instituições tradicionais de controle — um descrédito alimentado por mentiras constantes e por uma desvalorização agressiva de todos e tudo o que as possa desmentir — são hoje novamente bastante visíveis. Quando Trump e os seus imitadores noutros países atacam os tribunais e a imprensa sugerindo que estão ao serviço de interesses ocultos, não estão a exercer uma medida de ceticismo que é saudável e até necessária em relação a qualquer instituição, mas a alimentar uma impressão de ameaça e caos que deixa caminho aberto às suas próprias depredações.
★★★★★
A AMÉRICA CONTRA O FASCISMO
Rachel Maddow
Casa das Letras, 2024, trad. de Ana Saragoça, 407 págs.
História
★★★★
FASCISMO E POPULISMO — MUSSOLINI HOJE
Antonio Scurati
ASA, 2025, trad. de Miguel Freitas da Costa, 118 págs.
Ensaio
Os personagens centrais do livro de Maddow são tão improváveis como reconhecíveis. Um é o engenheiro e empresário Henry Ford, criador do moderno automóvel e de processos de trabalho que Hitler admirava. A admiração era mútua, ou pelo menos a afinidade intelectual, pois ambos eram ferozes antissemitas, atribuindo aos judeus todo o mal que existia no mundo, fosse na política, nas empresas ou até no basebol e nas artes. Ford, tal como Elon Musk hoje em dia (o paralelo é inescapável; só os bodes expiatórios mudaram, embora não completamente) tinha meios abundantes para promover a sua mensagem, indo ao ponto de criar um jornal (não havia então redes sociais) para espalhar o seu veneno e as suas falsidades, entre elas os Protocolos de Sião, a famosa falsificação russa antijudaica que hoje, não por acaso, voltou a circular na internet.
Outro expoente do nascente fascismo americano era o aviador Charles Lindbergh, um verdadeiro herói que era o estereótipo americano louro, como Trump, mas tinha todas as qualidades de coragem e realização que este não tem. A Lindbergh só faltou, felizmente, o sucesso político, tal como faltou a um certo jovem de famílias ricas chamado Philip Johnson que mais tarde se tornou conhecido como arquiteto, mas nos anos 1930 construía estruturas para comícios de políticos populistas que tentavam imitar as de Hitler em Nuremberg — imitações bastante fracas, aliás. Um desses políticos, o governador e depois senador Huey Long, era um populista de esquerda, o que mostra que as estratégias manipuladoras do fascismo não servem apenas as ideologias de blood-and-soil que normalmente lhe associamos. Se não tivesse sido assassinado em 1935, Long poderia ter derrotado FDR no ano seguinte, o que quase de certeza mudaria o destino da América e do mundo.
Quando os fascismos estavam em ascensão na Europa, ocorreu nos Estados Unidos um processo que podia ter levado a um triunfo semelhante
Para completar os paralelos, mencione-se a figura de Charles Coughlin, um padre católico cujas emissões de forte pendor antissemita eram ouvidas por cerca de 30 milhões de americanos — um quarto da população total. Tal como Lindbergh e outros, Coughlin perdeu grande parte da sua influência com o eclodir da II Guerra Mundial — nalguns aspetos as suas simpatias fascistas eram claras — e está hoje largamente esquecido, mas no seu auge teve um poder que rivaliza, se não ultrapassa, o de qualquer figura semelhante nos media desde então. Em contraponto a essas figuras, Maddow refere algumas que trabalharam ativamente para combater o avanço do fascismo na América: jornalistas, procuradores, empresários... Também eles estão essencialmente esquecidos, e merecem que as suas histórias sejam revisitadas.
Por coincidência ou não — certamente que não — acaba de sair um pequeno livro do escritor italiano Antonio Scurati que aborda os mesmos temas gerais do de Maddow em referência a outra situação histórica, a italiana, do tempo de Mussolini. Ao invés do que acontece no novo populismo de direita americano, aí a filiação de partidos atuais é mais ou menos direta. Mas as estratégias são em boa parte idênticas. Capitalização de ansiedades e crises (muitas das quais exageradas), manipulação de informação, erosão deliberada do discurso público, demonização de adversários políticos, e, como corolário disso tudo, cultos de personalidade em torno de presumíveis salvadores.
Autor de uma brilhante biografia de Mussolini que assinalou os 100 anos da chegada dos fascistas ao poder em Itália, Scurati conhece intimamente a tragédia inevitável que regimes desse tipo implicam. A certa altura, escreve: “O bom humor é, felizmente, uma disposição não rara a nível individual, mas, quanto ao temperamento coletivo, sobretudo nos períodos de crise económica e social, predomina decididamente o mau humor. E qual é o carácter dominante da vida reduzida aos seus humores mais negros? Uma mistura de maldade e melancolia, um estado de espírito de vaga tristeza, alimentado pelo comprazimento em sentimentos de inquietação e desilusão amalgamados com ressentimentos coléricos. Na origem e no centro de tudo está o medo.” Mussolini, recorda Scurati, fora banido do partido socialista, que era o da esperança. “Ansioso por encontrar um caminho diferente que o conduzisse ao poder, compreendeu que existia, como existe hoje em dia, uma única paixão política mais poderosa do que a esperança: o medo.”
Não estamos em 1919, e, como lembra Maddow, a História não se repete. Mas existe outra vez muita gente que perdeu muita coisa (agora com as crises, os confinamentos, a globalização...) e acha, bem ou mal, que pode ter ainda muito mais a perder. O cenário mediático é bastante favorável à circulação de explicações simplistas e redutoras que eliminam qualquer hipótese de distinção produtiva. Os ingredientes já existem. Falta saber se os cozinheiros estão à altura ou acabam por revelar-se aspirantes pífios. Esperemos que seja este o caso.
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