Sugestão de leitura | A selva dentro de casa
Durante a guerra colonial, diz-nos Possidónio Cachapa, “a morte vinha mais pelo correio”

Possidónio Cachapa
O novo romance de Possidónio Cachapa, “A Selva Dentro de Casa” é um relato autobiográfico e denso sobre uma juventude perdida numa guerra que vive em eterna memória. E de que, até hoje, se observam as sequelas
Esta é uma narrativa de forte pendor autobiográfico, como se infere pela dedicatória aos “que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto e branco”. Dedicatória, aliás, sentida e vívida que parece representar já um incipit. O autor passa depois ao particular e dedica o livro ao seu tio, em cuja experiência se baseou. Pela voz de António Joaquim (“Tóno”), o livro é narrado na primeira pessoa de forma magistral: sente-se nessa voz o lirismo da inocência, a ternura da infância e o maravilhamento perante o mundo. Pressente-se ainda a pungência do esvanecer desses dias felizes, tal como o do próprio tio Quim, jovem enviado para a guerra em África que não regressa o mesmo, que perde a alegria e o humor, e passa a beber para esquecer.

A SELVA DENTRO DE CASA
Possidónio Cachapa
D. Quixote, 2024, 280 págs.
Romance
A ingenuidade do jovem narrador permite-lhe, ainda assim, rasgos de lucidez perante a desordem do mundo: “A pobreza é das coisas que se aprendem mais cedo. A pessoa sabe que há dois mundos, aquele onde está aquilo que se deseja e um outro, bem mais rasteiro, à sua volta, onde nada do que se quereria, provavelmente, chegará.” No quotidiano de um Alentejo pobre e rural onde o tempo avançava sempre igual, o país é assombreado por chamamentos para uma guerra que não lhe pertence: “Nesses tempos, a morte vinha mais pelo correio.” Feito raro na literatura portuguesa, pois é incomum os jovens autores se debruçarem sobre as mazelas e sequelas da guerra do Ultramar. Numa narrativa circular, que retoma no final o episódio inicial com que se deixou o leitor em suspense, alude-se a duas mordeduras que acontecem em momentos emblemáticos distintos. Pela mordida de um macaco e de uma cobra, a realidade contrai-se em torno de sobrinho e tio, num aperto fatal que é o cerne desta belíssima história sobre vidas e famílias destroçadas por uma guerra que vive em eterna memória, na qual um menino aprende que nem só os bichos vivem acorrentados.
Paulo Nóbrega Serra. E-Revista, Semanário Expresso, 8 de fevereiro de 2025
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