Isabel da Nóbrega & José Saramago: a história desconhecida do amor que deu um Nobel
Em abril de 1967, Lisboa nem sonhava que dali a sete meses mais de 700 pessoas morreriam nas cheias que ficaram para a História. O mundo andava mais preocupado com a instituição de uma ditadura militar na Grécia e, entretanto, um homem desabafava a um amigo a força de um amor novo, confessando não ter capacidade para lhe resistir. Esse homem apaixonado era o futuro Prémio Nobel José Saramago; o amigo, o escritor José Rodrigues Miguéis. A mulher? Naquela altura, o nome tinha de ser segredo. Ele era casado, ela vivia com o mais renomado e feroz crítico literário da altura em Portugal. Era o que se pode classificar de um caso complicado.
Miguéis estava expatriado em Nova Iorque e, em março, reclama da falta de notícias do amigo e editor. Demorará dois meses a ter resposta. Na volta do correio, Saramago revela-se, com iguais doses de espanto e cautela. Vale a pena lê-lo na íntegra, sem parágrafos nem suspiros, sobre uma mulher tão misteriosa quanto fascinante.
“Pois é: desde que partiu para essa ‘tentacular' cidade, muitas coisas me aconteceram. Não muitas, emendarei, mas de peso. A primeira foi que acabou a minha ligação sentimental de que tanto falámos: verifico que ela, afinal, vinha acabando desde o princípio do ano passado. Histórias inevitáveis quando as pessoas não são iguais. Não adianta meter esporas aos sentimentos... A segunda, que não sucedeu porque, mas que aconteceu sem mais, foi que uma nova ligação começou. Entendamo-nos, no entanto: a palavra ‘ligação’, para este caso não serve. Ou servirá se for tomada na sua mais rigorosa aceção, que é dupla: ‘ligação’ é o que liga e o estar ligado. Há mil diferenças entre o que hoje se passa comigo e o que se passou… no passado. A maior de todas, e a mais significativa, é que pela primeira vez (insisto: pela primeira vez) encontrei uma mulher que me quis todo e só assim me queria. E olhe que não foi pequeno para o homem mascarado que eu era… Foi preciso descascar-me até às coisas escondidas, secretas, voltar ao ponto onde me desviei de mim e começar outra vez. Foram meses de luta que nos deixaram em frangalhos. Algumas vezes parecia que não havia remédio possível, que o caminho único era o rompimento. Por minha culpa, apenas: eu não tinha pulmões para o ar que me davam a respirar, nem braços para abraçar o mundo que me propunham. Tive de mudar de pulmões e dar aos braços o comprimento justo… Quando pudermos substituir estas cartas pelos passeios na Avenida da Liberdade, substituirei também as metáforas pela explicação tanto quanto possível do caso.”
Quem seria a mulher secreta que fez renascer José Saramago, 44 anos, então um escritor ainda em construção, que procurava afirmação depois de ter escrito um romance precoce que renegaria, Terra do Pecado (1947), e alguns poemas e contos esparsos? Que força da natureza era aquela que o surpreendera e invadira? Com 42 anos, separada do primeiro marido e ainda unida ao segundo companheiro, João Gaspar Simões — o mais poderoso crítico literário de sempre em Portugal, que fez e desfez carreiras durante mais de 50 anos, autor de romances medíocres e da primeira biografia séria de Fernando Pessoa —, a também escritora e já premiada Isabel da Nóbrega dava corpo e alma a uma paixão a que nenhum dos dois ficaria incólume. Uma relação que, por mais rasurada que viesse a ser das páginas dos livros dele, não conseguiria ser apagada das biografias de cada um. Tão forte que, para ela, seria suficiente para secundarizar a obra de uma vida.
A carta de José Saramago a Rodrigues Miguéis faz parte da correspondência que os dois autores mantiveram entre 1959 e 1971, organizada por José Albino Pereira e publicada em 2010 pela editora Caminho, e sinaliza que a relação entre José e Isabel, como se chamariam um ao outro durante quase 20 anos, começara em 1966, antes ainda das referências que surgem nos livros e reportagens que contam a vida daquele que seria o primeiro e até agora único Prémio Nobel de Literatura da língua portuguesa. José Saramago só se separaria da artista plástica Ilda Reis — mãe de Violante, sua única filha — em 1970, quando a paixão por Isabel da Nóbrega já surpreendera o meio intelectual de uma Lisboa ainda marcadamente conservadora. Mas as ousadias de Isabel começaram muito antes. Tinham lastro.
Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves nasceu no berço da alta burguesia de Campo de Ourique, numa Lisboa que hoje mais parece o retrato de um outro mundo. Ana Maria Magalhães — coautora com Isabel Alçada da célebre série infanto-juvenil “Uma Aventura” — é sobrinha de Isabel da Nóbrega. Ao Expresso recuperou as memórias que tem da tia, algumas das quais relatadas também da autobiografia Tudo Tem o Seu Tempo, editada pela Caminho em 2012, onde conta um pouco do que foi a vida das três irmãs no palacete dos Bastos Gonçalves, na rua Saraiva de Carvalho, na primeira metade do século XX.
“O avô Bastos, médico militar, fez uma carreira brilhante, deve ter operado pelo menos meia Lisboa, alcançou o posto de brigadeiro e foi diretor do Hospital Militar. Inteligente, culto, grande leitor, de uma retidão sem mácula, e com um apertadíssimo sentido de justiça, era admirado e respeitado pelos superiores e inferiores, pelos amigos e pelos inimigos. Em família, autoridade absoluta diria mesmo um ditador, a quem ninguém se atrevia a desobedecer e que todos adoravam por ser um pilar de estabilidade, o expoente máximo da segurança, um espírito vivo que vivificava as assistências com as suas histórias, as suas observações, conversas que nunca eram vazias e, eventualmente, com berros que punham o mundo em sentido.”
Ninguém ousava desobedecer-lhe, até que Isabel, a filha mais velha, pisou o risco. Desde a mais tenra infância que Isabel o habituara às surpresas. A família conta que terá aparecido a ler aos três anos, sem que ninguém a ensinasse. E, no mundo organizado do palacete — “com pelo menos quatro criadas, motorista e costureira permanente” — regido pela mãe, Helena, educada na fé protestante, as três irmãs — Maria Isabel, a “Belinha”, Maria Teresa, a “Tareka”, e Maria Leonor, a “Ninon”, além do rapaz, João Pedro — tiveram acesso à melhor educação, embora não tenham sido autorizadas a seguir o ensino superior. Terminada a quarta classe, prosseguiram os estudos em casa, com professoras particulares. Nas palavras de Ana Maria Magalhães, a tia foi “senhora de si desde que nasceu, dotada de uma inteligência aguda e sinuosa, em permanente estado de afirmação como se uma única vida não lhe bastasse”.
Com 17 anos, “Belinha” casou-se com Joaquim Abreu Loureiro, 14 anos mais velho e já então um médico famoso. Foi o primeiro J da sua vida. Aos 20 anos, Isabel já tinha três filhos, José, Pedro e Ana Isabel. Foi ela que os ensinou a ler e a escrever. E aos 23 publica o primeiro livro, o romance Os Anjos e os Homens. Do marido, diria mais tarde que era “um excelente médico”, embora fosse um pai e um marido ausente. Não é esta, no entanto, a memória dos dois filhos ainda vivos. Pedro, cardiologista de prestígio no Estoril, e Ana Isabel, que durante 40 anos foi enfermeira, recordam-se dos tempos felizes em que a família parecia sagrada. “Recordo-me de à noite, com os nossos roupões de padrão escocês, aprendermos a dançar: eu aprendi a valsa com o pai e os rapazes dançavam com a mãe ao som da música do ‘Terceiro Homem’”, partilha Ana Isabel, com os olhos cintilantes de saudade e ainda a ouvir o ritmo marcado da banda sonora do filme de Orson Welles.
A ordem que regulava a vida da família foi abalada quando Isabel conheceu João Gaspar Simões, a meio dos anos 50. Encantou-se com a sabedoria do crítico, um homem 12 anos mais velho e feio, casado e com uma filha. Numa entrevista em 2009, Isabel da Nóbrega não esconde que durante cerca de um ano manteve uma situação dupla, até que Gaspar Simões a pressionou: queria que abandonasse os filhos, ela recusou-se e veio a separação. Temporária. Até que uma carta anónima ditou o fim do casamento. “O meu marido foi levar-me aos meus pais e já tinha levado os meus filhos para a casa dos pais dele”, disse na mesma entrevista. Aos 31 anos seria uma mulher marcada pelas opções que fez. “Ela era um átomo livre, não podia ficar casada com ele”, sentencia a neta Gracinha Viterbo.
João Gaspar Simões foi o segundo J da vida de Isabel da Nóbrega. E foi o primeiro escândalo. O doutor Bastos Gonçalves nunca o aceitou. Quando o casamento acabou e Isabel foi viver com Gaspar Simões, cortou relações com a filha, mantendo com ela uma zanga que duraria cerca de 10 anos. Sob o estigma do abandono do lar, a Justiça também não perdoou Isabel, que apenas podia ver os filhos duas vezes por mês, na casa da avó paterna, Laura, sem nunca poderem ir à rua juntos. Nem a sociedade de Lisboa a desculparia: “Várias vezes viraram-lhe a cara enquanto descia o Chiado”, conta Ana Maria Magalhães. Quem nunca deixou de a perdoar foram os filhos, encantados com aquela mãe “mágica”, como ainda a recordam, apesar das dificuldades por que passaram. José, o mais velho, acabaria por ser mandado estudar em Santo Tirso, Pedro ainda hoje se emociona a falar das restrições judiciais, enquanto Ana Isabel prefere lembrar-se dos percursos que com 9 anos fazia de mãos dadas com a mãe, que, em segredo, a ia esperar à saída do Colégio St. Julian’s, em Carcavelos, e a acompanhava até à estação de comboio. Ou dos encontros à tarde quando saía do Ramalhão, em Sintra, onde era aluna externa, e tomava chá na casa de uma amiga de Isabel da Nóbrega. E se a mãe tudo aos filhos explicou sobre o amor que a invadira, o pai nunca mais falou na primeira e única mulher. Nem com ela voltou a falar, mesmo nas ocasiões especiais, como casamentos e batizados, a que ela nunca faltou, mas sempre em espaços separados do ex-marido. “Ela explicou-nos que gostava de uma pessoa maravilhosa, não nos escondeu nada e nunca julgámos a mãe”, dizem numa só voz.
O ónus da paixão
Durante dez anos não houve festa de Reis no palacete, em sinal da divergência entre Bastos Gonçalves e a filha mais velha. O médico nunca abriu as portas da casa da família a Gaspar Simões, mas chegaria a receber o terceiro J, o de José Saramago, escritor que admirava, apesar de ser comunista e amor que viria mais tarde na vida de Isabel. A relação do conservador Bastos Gonçalves com o escritor de esquerda não deixou de ser curiosa. “Lembro-me de o avô, a provocar, dizer que era fascista e de Saramago ficar calado. E, depois da separação, de ele ter-me dito: ‘Se eu não deixei a sua tia mais cedo foi porque tinha dito ao seu avô que ela estava bem entregue’.”
Assumida a relação com Gaspar Simões, que a tratava como uma mulher mais do que especial, o casal Isabel e João instalou-se na Calçada das Necessidades, num apartamento pequeno, mas bem decorado, que ainda hoje deixa saudades em quem lá entrou. E foram muitos os amigos de uma intelectualidade lisboeta que o frequentaram. Mais de uma década de uma “relação plena”, pelo menos a ter em conta a memória da filha Ana Isabel: “Eu adorava o Gaspar Simões, era um príncipe, tratava a mãe como uma rainha.” Mas o reinado teve um fim. Isabel deixou para trás o ciúme dele que a constrangia e o afogava e foi viver sozinha para a Rua de Santa Catarina. Era uma mulher livre, tinha uma obra a cumprir no mundo das letras.
Em 1967 foi convidada a integrar o grupo de fundadores da segunda série do jornal “A Capital”, onde teria uma crónica diária. Atenta, quer conhecer o rapaz que escrevia as badanas dos livros publicados pela editora Estúdios Cor, cujas instalações ficavam nas traseiras do jornal. Também neste ano, José, como seria dali para a frente chamado por Isabel, escreve o prefácio de “Já Não Há Salomão”, livro de contos de Isabel da Nóbrega. No texto, algumas frases parecem pistas de algo que já sentiam, como também notou Joaquim Vieira, autor de “José Saramago: Rota de Vida”, uma das biografias do futuro Nobel: “Às vezes não é preciso muito. Um gesto nu, uma pausa no olhar, uma vibração inesperada na palavra que ao acaso se lançou. (…) É então que vivemos com os outros, é então que com eles nos encontramos, naquele rigoroso limite que abandonou o acessório e o circunstancial para se fazer linha de horizonte, ponto de comunhão. Singular desejo é este de unir o tu e o eu.”
Sim, encontraram-se, ela, com os olhos verdes faiscantes, ele com o olhar de quem estava a sofrer, como diria a própria Isabel mais tarde numa entrevista. Ela, já uma autora premiada pelo seu segundo romance, o inovador “Viver com os Outros”, agraciado em 1964 com o prestigiado Prémio Camilo Castelo Branco, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), que premiou também, entre outros, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires e Maria Judite de Carvalho. Um livro que foi elogiado por críticos como Óscar Lopes ou Eduardo Prado Coelho.
José era ainda um escritor em potência. Isabel percebe-lhe o talento e não perde tempo, sugerindo que Saramago assuma o suplemento literário de “A Capital”. Estava dado o tiro de partida naquele que seria o seu mais ambicioso projeto: “nobelizar” o José. Em 2009, à pergunta da jornalista da “Tabu”, a escritora não hesita: “Viu que havia Saramago antes de haver Saramago? Ah, vi, isso vi… Quer ele queira, quer não, estou na vida dele assim.” Mas ainda é cedo para balanços, muita paixão havia para se cumprir, antes do desgosto.
José Saramago divorcia-se de Ilda Reis e, por volta de 1970, o casal José e Isabel instala-se na Rua da Esperança, número 76, na Madragoa, e, no alto dos 63 degraus que levavam ao apartamento onde viviam, começou a preparar-se a eternidade do Nobel. Familiares e amigos recordam a imagem de Isabel sentada no sofá a trabalhar, José a escrever na grande mesa, e de, em conjunto, irem burilando os textos que se iam escrevendo. Tudo era importante, nada se desperdiçava. Como ficou célebre entre os amigos a situação de, quando o pai de Isabel da Nóbrega morreu, esta ter querido ficar com a casaca do dr. Bastos Gonçalves, “para o José usar quando ganhasse o Nobel”.
Greta Statter, francesa de nascimento, portuguesa por opção, emociona-se a falar de Isabel da Nóbrega. Recorda “uma amiga como nenhuma outra”, que a acolheu como família, apesar da diferença de idade de 18 anos. Conheceram-se em 1969 e nos tempos da censura e da PIDE, Greta lembra-se dos telefonemas que pareciam estar a ser escutados: “Isabel dizia que havia formigas na chamada”, aludindo ao código fixado entre as duas para indicar que estariam a ser ouvidas. E Greta recorda-se ainda de ter chegado a acolher José e Isabel, então um conhecido casal de esquerda, na própria casa em que vivia, na Alameda António Henriques.
A Isabel da Nóbrega, José Saramago dedicou todos os livros, desde “Deste Mundo e do Outro”, ainda sob anonimato, até ao vazio a partir de “A Jangada de Pedra”, em 1986. A lista parece interminável, e quem lê as dedicatórias não consegue acreditar que tanta paixão pudesse acabar no vazio. Desde a primeira, em 1970, quando é apenas um sinal — “‘Para tão grande amor tão curta a vida/ Cheguei tarde ao encontro deste verso,/ Outro o escreveu por mim, mas dele tomo,/ Como rosa colhida que te ofereço”. Em 1971, maior fulgor: “Não se dirá aqui o nome. Mas de sua exaltação nasceu este poema, do seu rigor esta autobiografia, de sua verdade esta meditação. E basta.” Dois anos depois, preenche a lacuna em “A Bagagem do Viajante”: “Dir-se-á desta vez aqui o nome. Pelas mesmas razões de sua exaltação, de seu rigor e da sua verdade. E porque estes dias são mais exultantes ainda, mais rigorosos e de uma verdade que já é unidade inultrapassável. Isabel.” Já com nome próprio.
O tempo passa e em 1975, em “O Ano de 1993”, derrama-se: “Para a Isabel. Este livro, o antes e o depois dele, todos os passos e todos os gestos, todas as palavras ditas e as que estão por dizer. Assim. Mesmo que o tempo não entenda já de coisas como esta.” Em 1976, serão duas doses. Em “Os Apontamentos” — “À Isabel, este livro e todos” — e em “Manual de Pintura e Caligrafia” — “Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da minha vida.”
O auge surge na magna obra. Em “Memorial do Convento” (1982), Saramago excede-se: “À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova.” Pelo caminho ficaram ainda: “Para a Isabel, porque me disse de que lado está a vida”, em “Objeto Quase” (1977), “À Isabel sempre”, em “Levantado do Chão” (1980), “À Isabel cada vez mais”, em “Que Farei Com Este Livro?” (1980) e “A quem me abriu portas e mostrou caminhos, à companheira constante que tantas vezes disse. ‘Repara’ — e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes”, de “Viagem a Portugal” (1981). A derradeira seria enigmática —“À Isabel, outro livro, o mesmo sinal”, em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984). A partir dali, um pesado silêncio.
Depois de tudo, nada
Nos anos 80, a relação começa a esgarçar-se. Os rumores de envolvimento de José Saramago com outras mulheres somavam-se e há quem tenha visto o efeito dos ciúmes na personalidade de Isabel da Nóbrega. “Tornou-se mais desconfiada, chegava a ser incómoda”, recorda a sobrinha Ana Maria Magalhães. José foi gradualmente saindo da casa que partilhava com Isabel. “Era o centro da vida dela, que percebeu que ele estava a escapar-lhe pelas mãos”, afirma Zeferino Coelho, o editor que acompanhou Saramago na publicação das suas maiores obras.
Em 1962, Isabel da Nóbrega respondera ao “Questionário de Proust” no “Jornal de Letras e Artes” e, indagada sobre o que mais detestava nos homens, foi direta: “A mesquinhez.” Na altura não sabia que a palavra seria premonitória. Juntos, Isabel e José foram a Nova Iorque, Madrid, Paris, Veneza, Siena, Florença, Londres, Megève… E quando a relação começou a esfriar, a filha da escritora, Ana Isabel, não se conteve e confrontou Saramago. Recorda-o agora: “Disse-lhe que estava a tratar mal a mãe, que tivesse cuidado, que ela não era órfã.” A separação abateu Isabel. “Teve um grande desgosto, uma grande dor, durante dez anos quase não escreveu”, partilha a neta Alexandra.
Foi notória a certeza com que Saramago comunicou a Zeferino Coelho a decisão de que nunca mais as dedicatórias a Isabel da Nóbrega fossem publicadas. Lembra-se bem desse dia: “Saramago foi à editora e explicou que a relação tinha acabado e que ele ia sair de casa. ‘Separámo-nos definitivamente’, disse-me.” A firmeza do escritor foi total — “Tira.” E a resposta veio na mesma medida: “Se é para tirar, tiramos.” E tiraram, como se o passado pudesse ser alvo de reimpressões. E assim, os “novos memoriais do convento” não tiveram mais aquele quinhão da vida do autor.
Mas há quem não se esqueça, como a neta Alexandra Abreu Loureiro, que se recorda de uma ida ao convento de Mafra com o casal, juntamente com outros netos, ainda antes de o “Memorial do Convento” ter sido publicado, de lhe terem explicado a razão de ser dos nomes das personagens principais e de como Blimunda se devia “à ‘Belinha’ que lhe trouxe o mundo”. Em entrevistas, Isabel da Nóbrega explicaria que, ao ler o original do livro, se deparou com o nome Mariana Amália para aquela que viria a ser uma das personagens mais marcantes da literatura portuguesa. A rejeição foi imediata, disse a José Saramago que tinha de trocar, que procurasse nas suas pesquisas uma alternativa, e assim fez-se Blimunda.
Ao Expresso, Guilherme D’Oliveira Martins, administrador da Fundação Gulbenkian e amigo de Isabel da Nóbrega, destaca a capacidade de olhar para lá das evidências, presente quer em Ana, a personagem principal de “Viver com os Outros”, quer na sobrenatural Blimunda. Zeferino Coelho é mais cético. “Não concordo que ela [Isabel da Nóbrega] tenha tido um papel tão definitivo na escrita dele [José Saramago], mesmo esta questão do nome da Blimunda, nunca a ouvi dele. Ele sabia muito bem o que tinha escrito. Os textos vinham muito limpos e nem todas as sugestões que fazíamos eram aceites”, afirma o editor que o acompanhou em algumas das suas obras mais célebres, inclusive em “Memorial do Convento”.
Questionada sobre o apagamento das dedicatórias, Isabel da Nóbrega foi sempre digna. “Pois, ele tomou outra atitude que não era preciso tomar… Desapareceram aquelas dedicatórias lindíssimas — quem tiver a primeira edição vê”, respondeu numa entrevista, quando confrontada com o insulto mudo. E basta de desabafos e explicações. Os amigos, contudo, não perdoam. O musicólogo Rui Vieira Nery, que conheceu Isabel da Nóbrega nas tertúlias do ateliê do escultor Lagoa Henriques e com ela desenvolveu uma terna amizade, é duro. “Ela transformou Saramago num projeto de vida, deu-lhe um mundo que ele não tinha e, mesmo após a separação, nunca lhe ouvi uma palavra de mágoa ou de vingança. Ela não merecia.”
Também Júlio de Magalhães, economista, frequentou o mesmo circuito e tornou-se íntimo da escritora. Conheceu-a antes, privou no apartamento do casal na Rua da Esperança e, quando se deu a separação, não hesitou em escolher um lado, ficou com ela. “A separação foi progressiva, ele foi saindo e ela foi ficando cada vez mais ciumenta”, recorda. Mas, apesar dos maus momentos, a força da vida que havia nela fez-se mais forte — “Fomos a Paris juntos, saímos, ela gostava imenso de dançar.” Fernando Dacosta, outro amigo desde os tempos de “A Capital”, resume bem a personalidade da escritora e talvez até a secundarização da obra: “A Isabel, como a Natália Correia, percebeu o talento do Saramago e dedicou-se a fazer dele a sua última obra, desenhou uma estratégia para conquistar o Nobel. Mas, apesar da separação que aconteceu, ela gostava de viver a vida e entre escrever e viver, para ela era mais importante viver.”
Quando, depois da morte do escritor, editoras internacionais a tentaram seduzir para escrever sobre a relação, recusou-se sempre, assumindo um silêncio que não mais romperia. E depois de ter deixado o apartamento, nas escadas da Rua da Esperança, contudo, ficaram as recordações sob a forma de objetos, entre os quais terão ficado dois cartões pessoais, que o artista plástico e vizinho Tomás Colaço garante ao Expresso ter visto, assinados, de forma impessoal, “José Saramago”: “Agradeço que não fale de mim a ninguém” e “peço a devolução das minhas coisas”. Assim, os livros do escritor foram levados e a estante do chão ao teto de que ainda hoje se recorda quem por lá passou, recebeu outras obras. A Júlio de Magalhães, Saramago desabafou: “Uma mudança é pior do que um incêndio.”
Em 2009, Saramago tentaria explicar-se publicamente sobre a desfeita à ex-companheira: “Essas dedicatórias foram escritas porque havia um motivo, mas o motivo tinha deixado de existir. Porque é que os livros iam mantê-las? O livro inscreve-se no tempo. E as edições que correspondem a esse tempo continuam a ter dedicatórias.” Mesmo assim, entre os amigos de Isabel, ficou-lhe o rótulo de mesquinho e mal-agradecido.
Mas quando a vida é comum, é difícil estabelecer fronteiras autobiográficas. Isabel da Nóbrega chegou a assumir que, no seu livro de contos “Solo para Gravador” (1973), a história que dá título à obra tinha sido inspirada em José Saramago. E, numa entrevista, contaria que em 1975, quando integrava a direção da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e Simone de Beauvoir e Sartre vieram a Portugal, falhou o encontro com as duas pessoas a quem admirava. “No dia seguinte casava um primo do José [Saramago], com quem eu já estava, perto do Porto, ou em Braga. E eles só estavam um dia em Lisboa. E a coisa que eu mais queria era encontrar-me com eles, porque havia sempre desencontros. Tínhamos tido três desencontros. Tinha de escolher entre ir ao casamento ou não. Se eu não fosse, achei que fazia mal ao meu companheiro, e que a família pensava que ele estava ao lado de uma qualquer que não se mexia da cidade com o frio. E então acho que é uma das únicas coisas das quais me arrependo da minha vida.”
Se as reações públicas da escritora foram contidas, para quem a conhecia de perto o baque foi visível. “O erro dela foi ter abdicado de ser o centro da própria vida e tê-lo colocado nesta posição”, conta Ana Maria Magalhães. Uma das desconsiderações que mais lhe custou foi a escolha por José Saramago do restaurante Varina da Madragoa para celebrar em Portugal a sua boda em 1988 com Pilar del Rio, a jornalista espanhola que o conquistou e acompanhou até à sua morte. Pouso certo do casal José e Isabel, no tempo em que estavam juntos, o restaurante ficaria mais associado à nova e definitiva relação do escritor. E, da passagem por lá de Isabel da Nóbrega, nem uma fotografia restou.
Em 1998, a obra seria cumprida, José Saramago conquista o Nobel. Em Estocolmo, findo o jantar e as celebrações, no átrio do hotel, os convidados que ainda não subiram para os quartos conversam. Entre eles, o premiado e Ana Maria Magalhães, presente por ser mulher de Zeferino Coelho. Conta ao Expresso que, discretamente, Saramago lhe pergunta: “A sua tia, o que disse?” O tempo passa, as marcas ficam.
Questionada pelo “Jornal de Letras” em 2008, Isabel da Nóbrega não tem dúvidas: “Quando Saramago recebeu o Nobel já não estavam juntos, mas provavelmente não se espantou?” “Pensei que estava feita a obra.” Guilherme D’Oliveira Martins, que chegou a ser vizinho da escritora na Rua da Esperança, tem uma visão cartesiana do que aconteceu: “Isabel da Nóbrega aprimorou a escrita de José Saramago e sem ela não teria havido o Nobel. Mas sem Pilar del Rio também não, ela projetou-o internacionalmente, deu mundo à obra.”
Depois do nada, há vida
O artista plástico Tomás Colaço conheceu Isabel da Nóbrega por volta dos anos 2000, morava no edifício em frente ao apartamento na Madragoa que a escritora ocupava sozinha. Segundo conta, surgiu logo uma cumplicidade, e, da parte dele, uma grande admiração. “Eu tinha muito gosto em a ouvir, era elegantíssima, adorava estar com pessoas mais jovens”, recorda, no ateliê que tem no Beato, onde ainda guarda algumas poucas coisas do tempo em que conviveu com a escritora. Diz que, quando Isabel saiu da Rua da Esperança, deixou quase tudo para trás e ele guardou muita coisa. Como o desenho de Lagoa Henriques, uma das raras imagens em que a escritora aparece em situação de casal com José Saramago e que esconde uma história curiosa. Temendo que o retrato fosse destruído, Colaço pensou fazer uma fotocópia, mas ao tentar, o equipamento de reprodução destruiu o papel do desenho. Danificado, este ficou guardado até ser entregue a Guilherme, carinhosamente tratado pela família como “Guinfas”, o neto mais velho de Isabel da Nóbrega. Atualmente, está no cimo da escada da casa de “Guinfas”.
De tal forma Tomás Colaço se aproximou de Isabel da Nóbrega, que em 2015, o ex-vizinho acabaria por alugar o apartamento onde a escritora vivera, transformando-o numa espécie de centro de memória. Arrepende-se. Na “Casa-Museu Isabel e José”, anunciava-se que era possível, por €25, dormir na cama que se dizia ter sido do casal. Mas que não era. A atitude do artista plástico incomodou a família. Um artigo no “Observador” de há dez anos apresentava a iniciativa, mas com fotografias trocadas e induzindo os visitantes, sobretudo estrangeiros, em erro.
Não sendo muito vasta, a obra de Isabel da Nóbrega é multifacetada. Inclui mais de 3 mil crónicas, contos, romances com destaque para “Viver com os Outros”, dramaturgia, a organização de agendas compostas por poemas de Camões, Fernando Pessoa e Eugénio de Andrade, elogiadas traduções e prefácios, além da participação em coletâneas. E da produção literária para crianças e jovens. Dizia que “um bom livro não precisa de entreter, tem de acrescentar” e que para ela “a literatura era sagrada”. Durante três décadas teve um programa na rádio, com o nome de “O Prazer de Ler”. Colaborou com o Expresso.
José Saramago, em 1988, frente ao Convento de Mafra. Inácio Ludgero/Arquivo Expresso
Por tudo isso, em junho, no dia exato em que celebraria 100 anos, a Fundação Calouste Gulbenkian acolherá um colóquio, em parceria com a Associação de Professores de Português e a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sobre a obra de Isabel da Nóbrega, com o título “Em que mundo vivemos?”, o mesmo de uma crónica sua de 1972. Organizado pelo neto Guilherme, contará com a presença de vários investigadores, que se debruçarão sobre o legado da autora. A abertura caberá a Guilherme D’Oliveira Martins. A coroar a iniciativa, o anúncio da publicação da sétima edição de “Viver com os Outros”.
Para os netos, Isabel da Nóbrega ficou como a avó “Belinha”, alguém especial, “sempre cheia de sacos recheados com livros, que iam saindo lá de dentro como tesouros.” Guilherme e a irmã Mónica, filhos de José, e Alexandra e Gracinha, filhos de Pedro, nas conversas com o Expresso, nunca esconderam o encanto que a avó lhes lançou. Para eles escreveu livros, deixou histórias infantis, memórias de festas especiais, idas a museus e a teatros, uma viagem premonitória a Mafra para conhecerem o convento que seria imortalizado no “memorial” de Saramago, idas a Paris. Ficam-lhes as recordações da “mulher noctívaga, sempre perfumada e de batom vermelho, impecavelmente vestida, de olhos postos na janela para ver a lua e as estrelas”, que viajava de manhã para o Algarve e voltava de camioneta ao fim do dia, depois de restauradores banhos de mar.
Findo este percurso, contado pelas vozes de outros, Isabel definir-se-á por si própria. Num documento datilografado, sem referência a data, partilhado com o Expresso pelo neto Guilherme Abreu Loureiro, diz quem é e ao que veio. “Isabel da Nóbrega nasceu em Lisboa e vive em Lisboa. Viajou muito. Leu muito. Trabalhou muito. Deu uma base de educação aos três filhos. Escreveu livros. Salvou uma árvore. Conheceu e conviveu com pessoas fascinantes (Henry Miller, Simone e Sartre, Zélia e Jorge Amado, Arpad e Vieira da Silva, Artur Rubinstein, Leopold Stokowsky, Prof. Maronon…). Comeu à mesa de pobres e pobres comeram à sua mesa. Comeu à mesa de reis: rei Umberto de Itália; duques de Windsor; rei Carlos da Bélgica; rei Carol da Roménia; dom João D’Orleans, conde de Paris, pretendente ao trono; rei Juan Carlos de Espanha ainda enquanto príncipe. Amou muito. Foi amada. Há sempre demasiado sofrimento? Miséria? Guerras? Apesar de tudo prefere o planeta Terra a qualquer outro.” O nome dos seus homens? Não são referidos porque são secundários. Fazem parte da anónima quota do muito amor e demasiado sofrimento.
Em 2008, numa entrevista ao “Jornal de Letras”, aos 83 anos, Isabel da Nóbrega ainda mostrava entusiasmo: “Acima de tudo está o meu amor pela vida. Gosto muito de estar cá. Se pudesse, não morria.” Mas morreu, em 2021, aos 96 anos, depois de 15 anos a viver com a filha Isabel, cercada de todos os cuidados. Aos poucos foi perdendo a memória, mas manteve-se ela até ao fim. Para confirmarem que partira, a família fez o que várias vezes ela recomendara: puseram um samba a tocar e como Isabel continuou imóvel, confirmaram que tinha morrido. Deixou oito netos e 19 bisnetos e desde então que Guilherme queria homenageá-la, recuperando a sua obra, evidenciando-lhe as conquistas. Além do colóquio na Gulbenkian, está a ser preparada uma exposição na Escola Secundária de Camões, com direito a debates e a uma encenação de um texto seu. Lá estarão visíveis os retratos que Lagoa Henriques lhe fez, as várias edições dos seus livros, daqueles que traduziu e prefaciou e até “alguns objetos improváveis” que deixou.
Porém, no comunicado sobre a sua morte, a Sociedade Portuguesa de Autores preferiu sublinhar os amores da mulher, mais do que enfatizar a obra da escritora: “Isabel da Nóbrega foi, durante décadas, uma figura de referência e prestígio no quadro da vida literária e jornalística portuguesa, também devido à sua ligação sentimental com figuras marcantes da nossa vida literária, caso de João Gaspar Simões e depois de José Saramago, que lhe dedicou o romance ‘Memorial do Convento’.” E a organização que representa os autores deu-se ao direito de tecer comentários sobre a vida pessoal de Isabel da Nóbrega: “Mulher elegante, determinada e muito culta, nunca aceitou comentar o facto de Saramago ter decidido apagar as dedicatórias que lhe foram destinadas em obras essenciais do seu percurso literário”, sublinha a SPA, referindo ainda que a separação de José Saramago “foi um acontecimento que muito a marcou e em larga medida isolou”.
Já Guilherme D’Oliveira Martins prefere celebrar a qualidade do trabalho da amiga: “A sua grande generosidade talvez a tenha prejudicado, mas quando a lemos e quando vemos o seu percurso, percebemos que tem uma obra multifacetada, foi uma cronista fantástica, era um valor seguro. Tinha a discrição necessária e não precisava de se autoelogiar. Sobretudo, não marcou a literatura portuguesa por ter vivido com o Gaspar Simões e o Saramago. Tinha luz própria, era solar.”
Enterrada no jazigo da família, Isabel acabou lado a lado com Joaquim, o primeiro marido. Naquele dia, há quatro anos, Pedro e Ana Isabel, os filhos que lhe sobreviveram, saíram de braço dado do Cemitério dos Prazeres, consolados pelas voltas que a vida dá e que a morte encerra. “Acabaram juntos”, sossegaram. E sobre ela ficou a inscrição que tanto pediu: “Aqui jaz, indignada, Isabel da Nóbrega.” Lá dentro, ficou a avó “Belinha”, de pantufas cor de rosa para não ter frio nos pés durante a eternidade, cercada de algumas das suas leituras favoritas. Queria levar 120 livros na urna, levou menos, mas alguns dos preferidos acompanharam-na para lá do fim. O que ficou para trás, não lhe fará falta. Até porque sempre alertou a família: “O que há de mais fabuloso na minha vida não é para contar.”
Christiana Martins. E-Revista, Semanário Expresso, 27 de março de 2025
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