O regímen do eventual

 



Machado de Assis brinca com a ideia de as suas histórias terem uma “moralidade”. No teatro, o melhor drama está no espectador, não no palco

Convidaram-me amavelmente para dizer umas palavras na Feira do Livro sobre o segundo volume dos contos completos de Machado de Assis, mas sendo esta uma página de crónica, não de crítica, acabei por escrever a seguir à sessão um texto que abrange determinados aspectos do livro, porque tenho um temperamento “machadiano” e porque nem tudo é literatura.

Oscilando entre a crónica de “casos”, alguns talvez conhecidos à época, e o conto mais ou menos canónico, Machado, como diz de uma sua personagem, “tinha o sestro de narrar pelo miúdo os incidentes todos de um caso, ou de uma aventura, sem excluir as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da conversação”. O que o narrador faz é justamente isso, distribuindo a tarefa narrativa entre os diálogos, expositivos ou reveladores, e os comentários do narrador ou do autor, de um pessimismo divertido, bem menos amargo do que nos romances. O ficcionista, sugere Machado, tem como função suprir as lacunas das histórias, sejam elas verdadeiras ou inventadas, fazer um trabalho que não diz respeito aos “acontecimentos”, aliás abundantes, mas aos pensamentos e intenções das personagens, que no fundo não passam de especulações de um ficcionista, como em Henry James.

Machado de Assis (1839-1908)
Machado de Assis (1839-1908)

Tal como outro grande da época, Anton Tchékhov, igualmente céptico, atento e com bom ouvido, Machado nunca anda longe, não direi da comédia, mas do humorismo, quer nos jogos meta-literários, quer nos preciosos apartes e nas súbitas guinadas. Este segundo volume (organização de Amândio Reis, edição E-Primatur) tem alegorias, fábulas, pastiches, etc., mas nesta crónica interessam-me as histórias de “namorados”, o que significa “enamorados”, sejam ou não namorados de facto, tanto os felizes como os inconstantes, os triunfantes como os utópicos. Os homens dividem-se entre jarretas e janotas, mas são todos interesseiros, sempre à procura, além de beldades, de um dote generoso, um emprego distinto, uma nomeação governamental. As meninas, geralmente escandalosamente jovens e clamorosamente bonitas, gostam da corte como jogo, são esquivas, inconstantes, ambíguas. Mas Machado não julga ninguém, e brinca mesmo com a ideia de as suas histórias terem uma “moralidade”; considera-as acima de tudo um entretém, e um espetáculo de interpretações, não de evidências. Como refere a propósito de uma ida ao teatro, o melhor drama está no espectador, não no palco.

Muitas destas histórias têm a ver com a vontade: um rapaz e uma rapariga que se amam recusam casar por imposição das famílias, mas depois dessa recusa, casam mesmo, mas desta vez por gosto. Outras são sobre a vocação: um sujeito quer casar-se com uma menina e outro quer ir para padre, e no fim, o casadoiro ordena-se e o devoto casa-se. Noutras, é o sacrifício que está em causa: alguém casa a contragosto, mas para obter uma vantagem, fingindo que está a obedecer à vontade paterna. Há mulheres que declaram o seu amor definitivo por A, e no momento seguinte casam com B. Há quem rejeite um homem, mas o aceite mais tarde, nem que seja como segunda opção. E temos também o extraordinário episódio de um rapaz que salva uma rapariga de morrer afogada, tornando-se por isso o pretendente favorito do pai da moça, ao passo que a dita moça prefere um terceiro, que dança bem a valsa, provando, casquina Machado, que a coreografia é melhor do que a gratidão. E não esqueçamos a rapariga que quer assistir a uma peça intitulada “O Que É o Casamento?”, coisa de que os pais e o noivo desconfiam, porque interrogações sobre o casamento podem levar à pouca-vergonha ou ao celibato; sendo que, para o mestre brasileiro, o casamento é apenas um prólogo, não um desenlace, uma vez que a convivência e o envelhecimento fazem esmorecer os ideais e o ímpeto da juventude e instalam a decepção e o fastio. Vejam esta descrição de um “bom” casamento, com reticências e tudo: “Amam-se, respeitam-se, vão ao teatro…”

Machado tem aforismos invejáveis: fulano “gostava da sociedade, mas não amava os sócios”; sicrano adiou o seu projeto de suicídio “para tempos melhores”; e um desgraçado, depois de declamar um poema à amada, sujeita-se ao sarcasmo do narrador: “O poeta recebeu em paga um olhar.” Algumas observações não são originais, mas são indiscutíveis: “os homens nada desejam mais ardentemente do que o amor que se lhes nega desde logo”. Mas outras mostram-se de uma finura ou de uma ferocidade augustinianas: “Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regímen do eventual, o do Custódio era supersticioso.”


Pedro Mexia. E-Revista, Semanário Expresso, 19 de junho de 2024

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