"Se eu quisesse, enlouquecia” | biografia de Herberto Helder

Se eu quisesse, enlouquecia, a biografia de Herberto Helder escrita por João Pedro George, instala uma nuvem bacteriológica em torno do poeta. O trabalho é monumental e desequilibrado
Em “Antimemórias”, André Malraux pergunta ao capelão de Vercors:
“— Que lhe ensinou a confissão sobre os homens?
— … são mais infelizes do que se pensa… e depois, a essência de tudo, é que não há gente grande…”
O objetivo declarado de João Pedro George era ‘humanizar’ o mito. Querer desmontar os artifícios de um mistificador: eis, à partida, um intento que me é simpático. Paradoxalmente, lida a biografia, levanta-se um problema de ‘dosagem’ e instala-se uma espécie de nuvem, de crise bacteriológica, em torno do rosto do poeta.
Referia o escultor Rui Chafes, na morte: “Herberto Helder é (era) um exemplo de vida e ética que diz que é possível outra vida além da ganância em que vivemos.” O segundo termo da proposição, o mistério de ter privilegiado a pobreza recusando todos os prémios, é o único legado humano que lhe fica (não falo dos versos, mas da criatura). Talvez o mistério desse despojamento tivesse merecido um capítulo autónomo: que mitologia maluca, que arrogância, que genealogia, orgulho ou santidade, o levavam a renegar tudo o que os demais ambicionam? O livro tece poucas reflexões pessoais sobre esta matéria, como se fosse possível falar de Cristo, retirando-lhe a ressurreição.
Quanto aos ‘restantes restos’ da sua tíbia natureza humana, volatilizam-se, como explicitam Vítor Silva Tavares, seu editor de vários livros: “Não há ninguém que escreva como tu, és admirável, mas como homem não vales nada” (pág. 640), ou Linda, uma das suas paixões, numa carta de despedida: “O Herberto em tamanho natural é demasiado pequeno, medíocre, para merecer sequer um pouco de simpatia humana. (…) quero que estoires sem grandeza, na mediocridade que é a tua.” (pág. 679)
Herberto tinha uma vida dúplice? Com exaustão pedagógica, eis o desregramento, as maldades dos poetas explicadas às criancinhas. Talvez o desnorte para os enredos da vida comum, aqui revelado como a sua ‘verdade’ civil, fosse o preço a pagar para Herberto ser um poeta de nível estratosférico, insinuam alguns dos entrevistados. Bom, reservando o direito de lembrar que, já na Grécia, se admitia que as Musas nos mentiam!
A biografia funciona? O valor de qualquer obra depende da relação entre o seu conseguimento artístico e estético, de uma parte, e a sua ambição cultural. O livro ancora-se numa soma espantosa de cartas do poeta (e só por isso o livro vale) e num feixe de entrevistas igualmente tão vasto que terá metade da edição vendida à partida. A massa de trabalho investido merece o nosso aplauso. Reconheça-se os ecos do bom trabalho de investigação prévia, natural em quem quer fazer uma obra de referência. E sê-lo-á, apesar das minhas reservas.
A estrutura é simples, começa com a morte do poeta; segue-se um flashback e acompanhamos cronologicamente o seu percurso de vida. Sem embargo, esta biografia tropeça na sua megalomania: 896 páginas que pretendem abarcar a um tempo, a) uma narrativa cronológica, b) uma exegese da obra (e várias delas são dissecadas em inúmeras páginas) articulando-a o mais possível com o vivido; c) uma psicanálise; d) uma análise morfológica e sequencial dos níveis de receção da sua obra. O plano aguenta-se até mais de metade da biografia e a narrativa flui com dinâmica nos seus anos de formação, até sensivelmente ao regresso de Herberto de Angola, marcado pelo grande fator da sua estabilidade: o casamento com Olga Lima.
A catadupa de ‘provas’ com que se expõem as perversões do gangster Herberto visa o guião para uma pulp fiction? Será o verdadeiro pano de fundo demonstrar que tudo moralmente se equivale, num bom serviço às ‘indústrias da cultura’ que não distinguem o Toy do Zeca Afonso?
Depois do 25 de Abril e da projeção galopante do poeta, a narrativa desliza para outro eixo estrutural em torno do chiaroscuro que confronta o comportamento do biografado (um homem inconstante, ondulante e vário) com as principais personagens femininas da sua vida, dotando-as de um relevo vital: procede-se ao resgate moral das três mulheres que adquirem uma presença forte no livro. São elas a Olga Lima (o chiaro: a esposa, a grande mulher por trás de um grande homem, que ele escondeu durante 20 anos), a Linda (chiaro: amante, a lucidez na intimidade), e a Maria Estela Guedes (o oscuro: uma vítima às mãos de um manipulador que a usa, abandona e desvaira). O livro repõe a justiça que lhes cabe, como a outras mulheres. Uma estratégia legítima, quiçá, pertinente.
Pena, entretanto, que a minuciosa exegese do miolo de alguns livros, na primeira metade da biografia, não se tivesse estendido a “Photomaton & Vox”; seria curial esclarecer as chaves para que o leitor comum entendesse melhor uma poesia tantas vezes dada (erradamente) por hermética ou ilegível. E João Pedro George vai perdendo a mão sobre a edição dos materiais; no afã de não renunciar a um grama de informação (ao anterior mito do privado, sobrepõem-se os ‘valores’ da obscenidade do visível), agrega cenas dispensáveis que minam a coerência e a credibilidade das personagens, que até aí se ia construindo. E começa a petiscar nas intrigas das bilhardices.
A escrita de João Pedro George é competente, mas desencarnada, e no que concerne à sua expressa matéria verbal não empolga (que chocho o primeiro capítulo, depois melhora). Ademais, o terço final do livro centrifuga-se, desleixa-se: desnivela-se a sua tessitura nos capítulos finais, amontoam-se notas sem um eixo que as balize e sucedem-se as repetições.
Por outro lado, um furor arquivista apossa-se por vezes do seu autor, fazendo engonhar vários segmentos do livro em longas listas de um arenoso realismo enumerativo que entravam a leitura e talvez sirvam para o próprio escriba descansar de algumas anteriores boas páginas de análise, pois só isso explica o labor caricatural de outros momentos, a empáfia oca ilustrada no seguinte parágrafo, a anteceder uma nova lista: “O que significa ter um pénis tumefacto? Que é ter esperma? Em ‘Cobra’, o pénis (não necessariamente como alter ego do seu proprietário) exerce uma influência poderosíssima. Retratado, em geral, com a dureza que antecede o orgasmo, dando assim uma impressão de vigor sexual, o pénis da poética herbertiana parece saído das grutas de Altamira.” (pág. 692) Seguem-se duas páginas de metáforas com estalagmites e estalactites a penetrarem a genitália das ratas cegas (brinco), i. e., versos do Herberto aludindo ao coito. Seis ou sete exemplos bastariam.
***
Uma biografia tem de conter as poliédricas facetas do seu personagem — porque não a misoginia, o machismo descabelado, a falsidade com os amigos, a cobardia política, a hipocrisia, as urdiduras de um manipulador, o desapego filial, os vícios de cama? Mas há deslizes na economia das personagens que as faz esboroar. Na fossanguice de querer expor tudo, tudo; tout, tutti, all the things, João Pedro George perde a fé na possibilidade de o leitor ter imaginação e não assimilou uma das maiores lições dos modernos: no mais das vezes, menos é mais.
Olga Lima é a grande personagem do livro, a mulher que o poeta trouxe de Angola, um caso de força e devoção. A grandeza do sacrifício de Olga, a sua escolha martirológica para que o marido pudesse produzir a obra — a que ela misteriosamente se submeteu — são quase sempre defendidas. Não obstante, a descrição da bebedeira vexatória de Olga Lima nas págs. 587/588 rebaixa-a. Não por pudor quanto ao teor etílico, nada disso. É uma cena de uma vulnerabilidade inextricável, teria de primar pela sobriedade para não cair no melodrama barato. Tal como está desprotege-a — trai o ethos da personagem.
Olga também está em overacting aqui: “Eu sou ignorante, sou uma pessoa lá dos Mabus, tenho de agradecer muito aos portugueses terem-me cortado o rabo e ter passado de macaco para pessoa. Mas, azar ou sorte, foi a mim que ele escolheu. O Herberto achou piada ao gorilazinho” (pág. 818), e, aqui, é lastimável o modo como João Pedro George a expõe: “Antes de o Herberto morrer, o Daniel fazia o papel bem feito. Depois do pai morrer, já não interesso, porque dou barraca. Eu não faço o género do Daniel, sou mal comportada, não vou em histórias, não sou uma mulher emancipada. Mas ele não pode estrilhar comigo porque vou dar a minha parte dos direitos de autor do pai à filha dele. Disse-lhe: ‘Mas só se não me chateares’” (pág. 821).
Dir-se-á: não é uma personagem de ficção, mas real e por isso mais complexa. Depois de 40 anos de luta de Olga para aceder enfim ao reconhecimento do seu papel, o biógrafo (munido de que poder?) põe-se a futricar, expondo os dramas familiares? Não há regras, corte, escolhas a fazer? Ninguém se salva, além da pureza de intenções do narrador.
Outros exemplos traem a força e dignidade de algumas personagens, simplesmente em nome de uma lógica de reality show. Pouco depois do emborrachamento de Olga, a biografia adota o modelo de “I vitelloni”, de Fellini: a boa vida e o rodízio das traições amorosas, com o vate na grelha a virar as mulheres dos amigos, e os ‘abonados de talento’ (literário) a enxamearem à sua volta, encarniçados a mostrar como são feios, porcos e maus. Este despenhadeiro de condutas é uma leitura indecorosamente parcial dos ‘improdutivos’ da boémia — como se o narrador, sub-repticiamente, fosse um polícia de costumes.
A partir daí começam a aparecer as bizarrias: a cineasta Margarida Gil é dada como amante do Herberto, e apesar de ela própria o desmentir categoricamente no livro insiste-se nisso, como se a força do boato fosse nervo para a ‘veracidade’ do relato; realce-se também a anedota triste em torno de António Barahona, desnecessária para o telos da narrativa, a não ser que se pretenda desculpabilizar Herberto com as pequenezes dos colegas.
A catadupa de ‘provas’ com que a biografia expõe as manhas, perversões, e falhas de carácter do gangster Herberto, visa o guião para uma pulp fiction? Será o verdadeiro pano de fundo desta biografia demonstrar como os modelos intelectuais são indutores de comportamentos iníquos e que tudo moralmente se equivale — num bom serviço às ‘indústrias da cultura’ que não distinguem o Toy do Zeca Afonso? [...]
António Cabrita. E-Revista, Semanário Expresso, 6 de junho de 2025
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