Camilo, o Grande

 

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Aproximam-se as comemorações do bicentenário do maior prosador lusitano e primeiro profissional das letras, o inimitável Camilo. Efeméride relevantíssima neste Portugal desaportuguesado, cuja importância é inversamente proporcional ao burburinho que sobre ela fizeram políticos, eminências pardas, catedráticos e demais pobres tolos farfalhudos e coquetes, que por ela passaram à ilharga. De facto, tamanho silêncio ou é ignorância ou é alfinetada voluntária. Sed contra: talvez as duas e ainda uma terceira, que nisto da estupidez não há lei do terceiro excluído. Respondeo: é apenas mais um flagrante exemplo daquela “superficialidade calaceira com que em Portugal se passa por cima da História”. Inapropriável pelos senhores dos sucessivos regimes que nos vão desgovernando – esses senhores que tendem a enfardelar os valores -, o génio de Camilo incomoda e morde, como os cães do José Dias morderam o nalgatório do Sor Zeferino.



Camilo, o Grande



Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, mais tarde feito 1.º Visconde de Correia Botelho por S.M.F. D. Luís, nasceu em Lisboa no dia 16 de Março de 1825. Alto, façamos uma breve cesura aqui, que é o enjambement da prosa quando tropeça numa revelação espantosa. É que até no local de nascimento se lhe lobriga a refinada ironia com que o destino o brindara. De facto, de lisboeta Camilo tinha pouco ou nada, tendo sido antes o Norte – a Samardã de Trás-os-Montes, o Porto, Vila Real, Penafiel e sobretudo São Miguel de Ceide, onde terminou abruptamente os seus dias – a sua Pátria. Como escreveu Teixeira de Pascoaes, “É como se Maomé tivesse nascido na Gronelândia. (…) Onde Camilo nasceu, ou, antes, renasceu, foi na Samardã de Trás-os-Montes. Aquela serrania é a mãe do seu renascimento, e o depôs em berço de fragas, não em corpo, mas em alma predestinada”.
Da sua irrequieta peregrinação terrena – em que amiúde passou pelas forcas caudinas com ironia e pundonor, espécie de desprendimento cavalheiresco -, diremos que, se a virtude camiliana é a fatalidade do bem, a vida de Camilo foi a pura fatalidade. Ele, que desde cedo pressentiu a sombra do seu infortúnio – “a roda do meu infortúnio, roda com que estou sempre brincando como as crianças com os seus arcos”– e cuja vida foi, afinal de contas, uma sistemática fuga à felicidade tão bem descrita por Agustina: “Um homem dotado para a vida é um homem angustiado; ele sabe que quanto mais o génio progride e se expande, mais cria para si condições de desastre”. De facto, Camilo não procurou a bolha de sabão da felicidade, essa nebulosa elusiva. Ou, se a procurou, o que por ela entendia não partilhava grande contiguidade significante com o mesmo termo quando vertido noutras bocas – mais simiescas e temporais, mais chãs e estreitas, menos engalanadas e eternas. Mas, se a houvesse encontrado, a essa felicidade comezinha e inevitavelmente aburguesada, que seria do princípio dinâmico que animou a sua vida, i.e., a contínua e aparentemente irremediável exposição voluntária ao risco, a todos os riscos? Era apenas aí, qual trapezista suspenso nas cordas que unem Deus e o Diabo, que Camilo se movia e escrevia. E através dele e com ele descobrimos que a Arte, com a maiúsculo, é, as mais das vezes, o lucro sublimado da infelicidade que pagamos e suportamos. Da que vem ao nosso encontro, mas também da que procuramos.
Concordamos com Agustina – uma confessa apaixonada por Camilo – quando escreve, deliciosamente, que um génio rebenta com todas as combinações que a natureza fez para se entender com a espécie. Ora, o século XIX foi século de grandes e geniais escritores, muitos dos quais tiveram vidas marginais ou dificilmente compreensíveis. Pelo menos para nós – geração a quem as Musas podem esporadicamente visitar, mas onde jamais assentarão morada. Tolstói, anarquista cristão, abandona tudo para ir morrer na estação de comboio de Astapovo. Baudelaire, o maior poeta francês - viciado em ópio, debochado e bêbado-, morre afásico e sifilítico. Camilo, depois de uma longa vida de tormentos, rocambolesca mesmo quando era trágica, não aguenta a dupla escuridão da sua dupla cegueira e, desenganado quanto à irreversibilidade da sua condição, suicida-se. São notáveis, de tão assombrosas, as últimas palavras que nos deixou, pelo que vale a pena citá-las (ecoando o célebre soneto de Camões, em que o vate, depois de lamentar o dia do seu nascimento, fala-nos d’ a vida mais desgraçada que jamais se viu):

E eu, que tanto carpi os condemnados,
Os cegos—os supremos desgraçados!—
Já lagrimas não tenho para mim!”
(Nas Trevas, 1891)

Intramuros, é este homem desesperançado – o escritor prodigioso, o amancebado que chocava a pacóvia burguesia portuense, o suicida e malquisto Camilo – o Génio, é ele quem arrebata a palma da vitória e quem rebenta com todas as combinações que a natureza fez para se entender com a espécie. Nas letras, não tem par nem varão ou varoa que com ele ombreie. Pela torrencialidade das suas paixões, pelo verve vazado em escorreito vernáculo, pelo borbulhar de uma inteligência que sempre se recusou a ser conservada em escabeche para consumo asséptico e pimpão de uns quantos argentários. Até hoje não sei de que Hipocrene é que lhe foi dado beber, mas o certo é que punha e dispunha da língua, manejando as palavras a seu bel-prazer e conforme lhe convinha. Qualidade de que era consciente: “Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos, romances carmelitas, romances jansenistas, romances despóticos, monárquico-representativos, carlistas e até romances regeneradores: o que eu quiser, e para onde me der a veneta”. Bravata que, não fosse ele de facto grandioso, seria ridícula. Sendo assim, digamos que até suavizou os seus méritos (exagero? Pois bem, confiando-me à paciência beneditina dos dois leitores que ainda me toleram, inverto o ónus e peço a V. Exas. que tenham a gentileza de me indicar uma linha, uma só!, que esteja menos bem escrita).


Eminentemente trágico, embora sublime mesmo quando era notório o seu dilaceramento, é, digamo-lo assim, o nosso equivalente a um “poète maudit” (e nunca por um voluntarismo estético ou mania de impressionar própria dos efebos envernizados, mas pela integral adesão, sem tréguas e absolutamente honesta, ao seu destino) e, decididamente, o paradigma do génio literário português. Esta sua superioridade é, em bom rigor, simples de provar. Basta lê-lo, ainda que de modo desgarrado. Lendo-o, cedo descobriremos o que sobre ele escreveu Fialho: “Outros como ele trabalharam a língua portuguesa, e a souberam com intimidade igual e exuberância parecida; mas nenhum lhe deu aquela alma indómita, transfiltrando-lhe a pompa, o brilho, a energia e a graça em que ele a amoedou”.

Infra, partilhamos um diálogo “entre dois homens de tamancos, arremangados, com os peitos cabeludos a negrejar dentre os peitilhos da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na face”, também relembrado pelo saudoso Professor José Hermano Saraiva. É que, conforme este breve trecho exemplifica, Camilo, além de ser o maior escritor português, é também o mais português de todos:

“- Você quer fazer um cambalacho? – tornou o pedreiro recuando o chapéu para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos ombros.
– Se pintar… Já sei o que você quer… Não me serve. Você quer comprar-me o lameiro da azenha – não vendo.
– Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim. Você está a falar cum home. Pago-lhe as dívidas, você não fica a dever nada, e eu caso com a sua Marta. Pode dar os bens ao outro filho que eu não lhe quero uma de X.
– Você fala sério, ó sor Zeferino?
– Se falo sério?! Então você não sabe com quem trata.
– Ora bem – entendamo-nos – é a rapariga que você quer, a rapariga estreme, sem dote nem escritura?
– Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.
– A rapariga é sua.”
Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins

Pedro Ranito Chaves. Observador, 27 de julho de 2025

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