Ana Plácido, duzentos anos mais tarde

 




Escolheu um Cordeiro Pascal Joseja de Ayala, onde se concentrasse a ternura de muita luz declinada. Possui um velo dourado, o Agnus Dei, coroa-o e suspeita de uma auréola, rodeiam-no tulipas e malmequeres, miosótis, violetas e glicínias. Duzentos anos mais tarde, falaria de suas mágoas, e de seus arrependimentos, Ana Augusta Plácido, no Minho profundo, deste modo.


Quando não haviam sido impostos, ainda, todos os tormentos, experimentava eu os que afligem os heróis e as heroínas dos romances, forçando a correr, em minhas veias, o sangue que vitaliza os autores dos respetivos enredos. E lembro-me de traduzir, por esses tempos, em que não pesavam, sobre mim, os fardos da saudade e da mágoa, obras onde exauria a substância nutriente dos nervos sobreexcitados. Eram livros menores, quiçá, os que me ocupavam, Como as Mulheres se Perdem e A Vergonha que Mata, ambos de Amédée Achard, os quais, naquele instante, pareciam resumir as delirantes aventuras da minha vida. E, se soubesse eu antecipadamente aquilo que o sofrimento haveria de me acarretar, com muito cinismo, apenas, me teria abalançado a transferir, para português, esse fruto de Benjamim Constant, que ostentava o premonitório título de Aprender com a Desgraça Alheia

Em Setembro de mil oitocentos e setenta e sete, arrebatou o Senhor o meu Manuel Plácido, o qual constituía a terna memória que, de uma época de opróbrios e de fugas, de paixão e de castigo, me alumiava as sendas do percurso deste Mundo. Apesar de tal, acobertei-me eu, com minhas penas e meus papéis, tentando enfrentar, na voz dos outros, a medonha amargura, que me pungia, não recebendo melhor, em minha ansiedade de obter o bálsamo cauterizador, do que o agravamento da mais excruciante consternação. 

Ali, ficava essa espécie de herança, para quem desejasse ir estudar nela, no futuro, o retrato de uma amante traída e de uma mãe inconsolável, despojo do meu labor de medíocre plumitiva, a quem não ofereciam, já, os próprios voos do espírito, ou as viagens da imaginação, o substituto de um lenço de finíssima cambraia, que absorvesse o choro desabalado. E, para o Camilo, para a obstinação de seu ofício de trevas, é que encaminhava eu, depois disso, a serventia de meus dotes, colocando-me em proveito do glorioso porvir que, no íntimo de mim, sentia concedido ao Escritor. 

Acumulava os apontamentos de que se utilizaria ele, em folhinhas volantes, impregnadas da infinitude do afeto, que meu agreste companheiro implacavelmente desprezava. E ia, amiudadas vezes, àqueles volumes imensos, com o odor dos cartórios e dos tombos, esmiuçar uma passagem que, de repente, se manifestasse indispensável. "Desentranha-me o excerto da Ilíada, se faz favor, onde são inventariados os presentes recebidos, por Agamémoron, antes do início da guerra de Tróia", requeria ele, e lá me deitava eu, muito célere, a buscar aquilo que, por urgência ou por capricho, se afigurava sumamente imprescindível.

Quando o mal da vista, entretanto, começou a martirizar Camilo Castelo Branco, e não havia vela, na casa, que não fosse requisitada, para lhe facilitar a leitura, era eu quem lhe recitava os fragmentos que ele exigisse, quando não prosseguia decifrando os escritos que me propunha, garatujados naquela delgada rede, que se assemelhava, com frequência, a uma fantasmagoria de insetos aéreos. E despachava-lhe a correspondência, e organizava-lhe o epistolário, e guardava-lhe os jornais onde o cominavam, quase alternadamente, de a mais infame criatura da Terra e de o maior génio de Portugal. 

Encontro-me aqui, por isso, sujando a alvura do almaço, com cousas que, se não equivalerem a uma mensagem final, hão-de significar os arrancos com que uma alma oprimida diligencia libertar-se. E, aproveitando alguns elementos desta resma de manuscritos, atiçarei o lume das lareiras, enquanto aos restantes cadernos salpica a humidade deste torrão do extremo da Europa. 

Que património legará, a seus netos, Ana Augusta Plácido, quando fechar os olhos pisados, que não seja a crónica que ninguém compôs, e que representa a desautorização da ordem por que se regem os honestos e os justos? Nasci indigente de cautelas, pois que a previsão dos desastres que me esmagariam, para ser verdadeira, não se continha na essência da rapariga que de vermelho se vestia, entretecendo uma camélia muito branca, por solitário enfeite, nos cabelos. E, se aspirasse ao repositório de quanto me exaltou e me submeteu, me coroou de louros e me retalhou os peitos, escolheria eu uma pedrinha humilde, para nela gravar as terminantes palavras, "Nunca mais". 

Debruço-me eu, através da vida toda, sobre o rosto alterado do nosso primogénito, buscando a explicação do castigo enorme, fulminado por um deus de cuja infinita benevolência me falavam os catecismos. E vejo-o, em resposta às minhas interrogações, dependurado das ramagens, como se fosse um desses mistos do humano e do animalesco, que preenchem os relatos das mitologias antigas. Quando as fúrias se apoderam dele, e não há recanto da casa, por conseguinte, em que me ache resguardada, contra o flagelo de seus gritos estrídulos, vou ajoelhar-me, diante de um altar, e ponho as mãos, e imploro a misericórdia dos Céus. Abre-se-lhe um sorriso muito manso, então, e embalo-o docemente, no regaço, ou guio-lhe os movimentos do lápis, com que desenha tudo que o olhar lhe oferece, faces e montes, castelos e bichos, e deponho essas delicadezas de uma alma inocente, diante do Pai que, em verdade, não padece menos do que eu. Que espinhos coroam a cabeça do meu doudinho, ao quedar-se imóvel, no escuro das noites, a perscrutar os abismos do extermínio, sem que se lhe modifique o semblante, à passagem da luz do candeeiro-de-petróleo, com que procuro alumiar-lhe aquela prostração? "Jorge, meu filho", segredo-lhe debilmente, ao ouvido, e não se manifesta graça que mo devolva, são e perfeito, como merecia, e nenhuma cousa me resta, além de lhe aconchegar os cobertores, aos pobres ombros nus, na esperança de que o dia desponte, e recolham os espíritos malfazejos a terrível malha do pesadelo que o abate. 

Quanto ao outro, ao que anda desenfreado, como se cada hora equivalesse à derradeira, apressando o termo da sua existência, na constante antecipação do momento seguinte, não há ternura de mãe que se corporize, mas o receio, apenas, e a antevisão da tragédia. Povoa-nos o terreiro essa súcia que o acompanha, em que as perdidas se cruzam com os contrabandistas, e os cocheiros se chocam com os jogadores, e reclama ele mais dinheiro e mais cavalos, que lhe autorizem a prossecução, assim, da infernal correria em que se lhe volveu o fadário. É o segundo braço da cruz a que o Senhor nos pregou, e dele tomamos consciência, sempre que as gargalhadas e os impropérios nos tingem, e as gavetas se revistam, em demanda do que haja sobrado, e não deixam os credores de sacudir o cabo da sineta, exigindo a imediata satisfação de seus direitos. Não existe voz que o demova, nem princípio a que obedeça, nem remorso que o transforme, porque a seu negro coração, tão-só, presta ele contas, no gozo infrene dos prazeres da carne, na embriaguez alucinada de todos os sentidos. "Nuno, meu filho", acerco-me da sua figura, com estas palavras, e eis que deparo, por réplica, com o insulto que fere, com a frieza que mata, com a porta que bate, na cara lavada de lágrimas. 

Será esta, meu Jesus, a descendência de Ana Augusta Plácido e de Camilo Castelo Branco, para que contemple o Mundo, à vista dela, a sanção que desce, sem apelo, sobre os que prevaricam? Reverto à minha mocidade, na lembrança, e considero como era imenso o amor, toucado de rosas, levado em triunfo, de encontro aos exércitos da morte. Ninguém inventaria, por essas alturas, coragem que me falecesse, nem arrogância com que não houvesse eu sido premiada, quando permaneciam longe de mim, ainda, apesar dos sobressaltos e das carências, os instrumentos do martírio que me pungiria. Observando a expressão do homem de meu incauto destino, admitia eu que não cairiam, nunca, sobre mim, as trevas quaresmais, pois que possuía, ali, um peito amorável e um espírito atento, sob uma revoada de eternas afeições. Bem certeiras se revelariam, Ana Augusta, as profecias de quantos te voltaram as costas, ao avistarem-te, já, há quarenta longuíssimos anos, perpetuamente encarcerada e sem remissão. 

Em volta de Camilo, adensavam-se as sombras, a formar um muro altíssimo, por detrás do qual se defendia, talvez, das flechadas do exterior, soçobrando nos tormentos da sua mente conturbada. E não cobrava descanso aquele ser, como se a natureza o houvesse transmudado, de modo crescentemente irreversível, numa fera faminta, dilacerando as próprias carnes, no ímpeto de se domar. Chamava uma carruagem que o transportasse, de imediato, ao Porto ou a Santo Tirso, a Guimarães ou ao Prado, e eis que, ato contínuo, volvia a Ceide, onde o aguardava eu, escrava de um dever que se recusava ele, sempre, a servir, ofertando-lhe o silêncio tranquilizador, quando nada mais tivesse a lhe tributar. E tornava-se um diadema de velas acesas o casarão, para que se lhe iluminasse o caminho que levava, e não cessava de avançar a escuridade, ameaçando sufocá-lo, a todo o instante. Permanecia estático, assim, em sua cadeira, por semanas a fio, e era necessário conduzi-lo, à tardinha, àquele quarto onde, apesar da cegueira, fosse dia ou fosse noite, jamais, mas jamais, as lâmpadas se extinguiam. De longe a longe, uma turbação o tomava, e punha-se a garantir que vislumbrava uma claridade, e que um anjo lhe ia apontando, por aí, a saída do negrume, mas recaía, tão pronto se exaltava, num abandono maior. E não existia quem o amparasse, na trajetória que, dentro de si mesmo, andava executando, apegado a um imaginário bordão, que desconhecia o terreno a tatear. Batiam as horas, no relógio da sala, e tanto fazia que cantassem, lá fora, os pássaros, ou que uivasse o vento, pelas frinchas do telhado, porque era mais gigantesco do que tudo o peso das nuvens tenebrosas que, em seu desolado coração, se albergavam.

Mário Cláudio. O rosto e a casa in Convergência Lusíada, 1995.

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