Literacia mediática como antídoto contra a desinformação eleitoral
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«As eleições autárquicas do próximo dia 12 de outubro serão um barómetro importante da nossa capacidade de enfrentar a desinformação» - a opinião de Pedro Jerónimo, Investigador Auxiliar da Universidade da Beira Interior.
A desinformação, embora não seja um fenómeno novo na história da humanidade, ganhou uma relevância sem precedentes na agenda pública nos últimos anos. Eventos como o Brexit e a eleição de Donald Trump em 2016 demonstraram o seu impacto significativo. A ascensão das redes sociais e a predominância das plataformas – fenómeno designado de “plataformização” – amplificaram exponencialmente a velocidade de disseminação da informação, tornando os algoritmos atores cruciais na esfera pública. Estes algoritmos contribuem para a polarização, a formação de câmaras de eco e as bolhas de filtros, que, por sua vez, moldam decisões quotidianas e debates democráticos.
A desinformação é frequentemente produzida com o objetivo de viralizar, utilizando títulos ou conteúdos exagerados e sensacionalistas, explorando sempre a dimensão emocional. O seu alcance costuma ser significativamente maior do que o das notícias verdadeiras, alimentando o lucro financeiro das plataformas. Daí que haja resistência, da parte destas, em assumir responsabilidade ou adotar medidas eficazes de combate à desinformação.
Este cenário torna-se particularmente crítico em contextos eleitorais, onde a desinformação atua como um “vírus” com elevado potencial de dano à democracia. À medida que nos aproximamos das eleições autárquicas, a problemática da desinformação, especialmente a nível local, emerge como uma ameaça real e subestimada, capaz de distorcer o debate público e fragilizar as bases da cidadania.
A vulnerabilidade das comunidades à desinformação é agravada pelo surgimento e proliferação dos “desertos de notícias”. Definidos como comunidades, rurais ou urbanas, com acesso limitado a notícias e informações confiáveis que alimentam a democracia a nível local, estes desertos tornaram-se mais comuns devido ao declínio dos meios de comunicação regionais. Este declínio foi acelerado pela pandemia de COVID-19 que, embora tenha temporariamente fortalecido alguns meios ao aumentar a procura por informação, também fragilizou financeiramente jornais, rádios e meios digitais de natureza jornalística que atuam aos níveis local e regional.
Em Portugal, o cenário dos desertos de notícias é preocupante. Um estudo de 2022 revela que mais de metade dos concelhos (53,9%) se encontram em risco de se tornarem desertos de notícias, incluindo 54 concelhos em “deserto total” (sem nenhum meio de comunicação) e 24 em “semi-deserto” (com cobertura noticiosa infrequente ou insatisfatória). Estes desertos são mais frequentemente observados no interior do país, em comunidades com menor população, menor dinamismo económico e populações mais envelhecidas. Nestas áreas, a dependência das redes sociais para aceder a informações locais é elevada, o que as torna gravemente vulneráveis à desinformação, uma vez que a falsidade prolifera facilmente nestes ambientes sem verificação profissional.
Um dos desertos de notícias, entretanto aprofundado em outro estudo, ilustra bem esta realidade. Durante os incêndios no concelho de Manteigas, distrito da Guarda, em 2022, a ausência de meios de comunicação locais levou a que a população dependesse não só de jornais de concelhos vizinhos, mas sobretudo de fontes alternativas, como as redes sociais e o “boca a boca”. A página pessoal do presidente da Câmara Municipal de Manteigas, por exemplo, tornou-se uma das principais fontes de informação sobre os incêndios, substituindo o trabalho que idealmente seria feito por jornalistas locais. Embora estas páginas institucionais e perfis oficiais sejam vistos como fontes importantes de informação, levantam preocupações sobre o viés e a falta de escrutínio crítico. A informação é predominantemente institucional e pode não apresentar pontos de vista diversos ou críticos ao poder local. A ausência de um jornalismo profissional, que sirva como mediador do debate público e fiscalizador do poder, é uma perda significativa para a democracia local.
Perante este quadro complexo, a literacia emerge como uma resposta fundamental. O Dia Internacional da Literacia, celebrado a 8 de setembro, lembra-nos que a literacia é um direito e um pilar da liberdade, mas, na era atual, o seu conceito expandiu-se. Não se trata apenas de ler e escrever, mas de desenvolver uma multiplicidade de competências – científica, para a saúde, financeira, digital e, especialmente, mediática. A literacia mediática capacita-nos a interpretar criticamente os conteúdos dos media, a questionar a origem das notícias, a verificar fontes e a contextualizar imagens e discursos, agindo como um antídoto contra as “fake news”, as teorias da conspiração e a manipulação ideológica.
É essencial educar para os media desde cedo, nas escolas, e ao longo da vida, em diversos contextos. A literacia mediática é, antes de mais, uma atitude cívica, permitindo resistir à polarização e ao ruído que distorce o debate público e fragiliza a democracia. Em Portugal, iniciativas como os cursos desenvolvidos pela Universidade da Beira Interior (UBI), através do LabCom, e disponíveis na NAU, são exemplos desse esforço: “Como entender a desinformação e fortalecer a cidadania”, para o público em geral, e “Como noticiar a desinformação e capacitar as audiências”, dirigidos a jornalistas. Estes cursos, de acesso gratuito, representam um investimento crucial numa sociedade mais crítica, mais informada e mais livre. Outros recursos “made in UBI”, mais concretamente provenientes do projeto MediaTrust.Lab (2021-2025), estão disponíveis: desde um guia de boas práticas a jogos e experiências interativas, que contribuem para uma leitura crítica dos media por parte dos cidadãos.
Além da literacia, a resposta à desinformação a nível local pode beneficiar de uma relação colaborativa entre jornalistas e membros ativos da comunidade. A verificação de factos (do inglês fact-checking) tem o potencial de reduzir a proliferação de desinformação, informando os utilizadores sobre a imprecisão de certos conteúdos e influenciando os algoritmos a mostrá-los menos. Contudo, a verificação de factos profissional enfrenta desafios de escalabilidade e, por vezes, de confiança do público. A ideia de aproveitar a “sabedoria das multidões” (do inglês, wisdom of the crowds) para a verificação de factos, através do envolvimento ativo dos cidadãos, mostra-se promissora para escalar e tornar os processos mais ágeis e potencialmente mais confiáveis. Essa proximidade entre os meios regionais e as suas audiências, baseada em laços de confiança e relação emocional, pode ser capitalizada para combater a desinformação ao nível local.
Embora existam desafios, como a manipulação por bots ou grupos organizados, vieses ideológicos e a dificuldade de lidar com conteúdos divulgados por líderes de opinião, o envolvimento do público, como parte de um conjunto mais amplo de iniciativas, pode trazer mais benefícios do que malefícios, especialmente onde a proximidade gera maior confiança. É crucial, portanto, que o combate aos desertos de notícias vá além da mera questão do financiamento dos meios de comunicação, repensando os modelos de negócio do jornalismo de proximidade, de modo a considerar a conexão intrínseca entre os meios e as suas audiências, talvez explorando modelos alternativos e participativos.
As eleições autárquicas do próximo dia 12 de outubro serão um barómetro importante da nossa capacidade de enfrentar a desinformação e de assegurar que as decisões eleitorais se baseiam em informação credível e diversa. Promover todas as formas de literacia não é apenas um ato educativo, mas um investimento direto na saúde da nossa democracia local. Porque, no século XXI, ser letrado não é apenas saber ler palavras. É, sobretudo, saber ler o mundo e, por extensão, saber ler o voto.
PS: Um dos contributos mais recentes do LabCom e da UBI foi o lançamento do Observatório de Desinformação Política, que reúne já um conjunto de estudos relacionados com os últimos atos eleitorais em Portugal.
Fonte: Pedro Jerónimo, Notícias, Plataforma Nau
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