Dos ciganos pode dizer-se tudo
Imagine um cartaz que dissesse: “Os judeus têm de cumprir a lei.” Imagine esse cartaz em qualquer lugar da Europa de hoje — ou na dos anos 30. Ninguém teria dúvida do lugar profundo de antissemitismo de onde ele viria, um antissemitismo que manchou a história europeia dos piores crimes cometidos neste continente e que continua ainda vivo e perigoso nos dias de hoje.
Dos ciganos, porém, pode dizer-se tudo. Pode inclusive esquecer-se que eles, os europeus de etnia roma, foram também vítimas do Holocausto — meio milhão, ou talvez mais, de pessoas assassinadas nas câmaras de gás, entre um quarto e metade da população da etnia nesse tempo. Mas para os ciganos não há a consideração e o respeito histórico que lhes seria devido enquanto vítimas do nazi-fascismo, que também foram.
Esta semana ouvi no plenário do Parlamento um deputado apontar para as galerias e dizer que “ali não estão ciganos, mas polícias e bombeiros”. Não me interessa o nome do deputado, porque ele faz isto precisamente para chamar a atenção e já tem demasiada atenção. Mas a questão é: terá ido ele fazer algum teste genético a quem estava nas galerias ou é simplesmente o preconceito que dita que um cigano não poderia ser polícia nem bombeiro? E, no caso de alguma daquelas pessoas ser cigana, por que razão ninguém se incomoda com o terem de viver com o estigma de dividir a sua existência, não passarem por ciganos se forem polícias ou bombeiros ou de qualquer outra profissão e terem de ouvir as piores coisas sobre as suas origens se forem ciganos?
Disse que não me interessa o nome do deputado porque, no caso, a raiz do nosso problema não está só nele. É na naturalidade com que muitos acham que sobre os ciganos se pode dizer tudo, como se os ciganos não fossem também pessoas cuja dignidade é violada por este tipo de ambiente como seria a de qualquer outra pessoa, como se as suas crianças não sofressem também com o preconceito, como se pudéssemos para sempre continuar a achar que eles, as suas famílias e as suas comunidades, têm forçosamente de ser os bombos da festa de uma retórica política cada vez mais odiosa, que tira partido do estigma para estigmatizar ainda mais.
O discurso e a atitude sobre os ciganos é, em Portugal, neste ano de 2025, absolutamente indigna. Não só por aquilo que se diz como pelo facto de não haver praticamente ninguém que se oponha a este preconceito em específico. As pessoas — em particular se forem líderes de opinião, políticos ou representantes eleitos — parecem acreditar que, sendo os ciganos impopulares, essa impopularidade se pega como peçonha a quem ousar dizer que os ciganos não devem ser tratados como a nenhum ser humano se deve tratar. Que não devem ser tomados por criminosos ou desrespeitadores da lei pelo simples e mero facto de serem ciganos. Que em Portugal, como defendia Augusto Santos Silva ainda há poucos anos, que parecem uma eternidade, “não há imputação coletiva de culpa”.
O resultado é gente que se esconde e fecha ainda mais. O resultado é gente que não ousa dizer que é cigana — são assim tão diferentes dos restantes portugueses, os ciganos? — e que ouve nos autocarros ou nos cafés as piores coisas sobre os ciganos. E que se, por acaso, assumirem que são ciganos ouvirão de volta que “o problema são os outros”. Como Ilse Losa, escritora portuguesa de origem alemã e judia, recordava ter ouvido dizer sobre si mesma no autocarro, na Alemanha dos anos 30. Mas dos ciganos pode dizer-se tudo, em Portugal, em 2025. E há poucos que levantem a voz contra isso.
Rui Tavares. E-Revista Expresso, 31 de outubro de 2025

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