O direito de perguntar em tempos de algoritmos e IA
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Imagem produzida com recurso à IA
Em linhas gerais, pode-se dizer que a filosofia se organiza em algumas grandes áreas clássicas, como a metafísica, a epistemologia, a ética, a filosofia política, a estética, a lógica e a filosofia da ciência. A metafísica pergunta o que existe e como se estrutura a realidade no seu nível mais fundamental. A epistemologia investiga como conhecemos, quais são os limites do saber e o que distingue conhecimento de opinião. A ética interroga o que devemos fazer e quais são os critérios de uma vida boa e justa, individual e coletivamente. A filosofia política examina as formas de poder, os direitos e as instituições que podem proteger a liberdade. A estética trata da experiência do belo, da arte e da sensibilidade. A lógica analisa a forma dos argumentos, aquilo que torna um raciocínio válido. Já a filosofia da ciência questiona os fundamentos, os métodos e o alcance das explicações científicas. Há outras áreas, mas aqui fica a visão panorâmica.
Nada disso é abstrato demais para a “vida real”. Cada uma dessas áreas atravessa decisões e conversas quotidianas: do voto que depositamos na urna à maneira como lidamos com as redes sociais, do modo como consumimos às escolhas sobre o futuro do planeta. Quando alguém compartilha uma notícia sem verificar a fonte, há ali um problema epistemológico e ético. Quando uma cidade decide onde investir mais recursos públicos, está em jogo uma questão de filosofia política e de justiça distributiva. E quando discutimos sobre Deus, se o mundo é fruto do acaso ou tem um sentido, se o universo “começou” em determinado momento ou é eterno, estamos a dialogar com a metafísica. Do mesmo modo, ao perguntar o que é uma vida boa, quais devem ser os limites da ciência sobre o corpo e o ambiente ou que tipo de sociedade consideramos aceitável, lidamos diretamente com a ética, a filosofia da ciência e a filosofia política, ainda que não mencionemos esses nomes.
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É sempre bom lembrar que Sócrates estava nas praças de Atenas, e não em bibliotecas ou gabinetes inacessíveis. Se hoje a filosofia não encontra maneiras de ocupar as “praças” contemporâneas, sejam elas as escolas, as ruas ou as plataformas digitais, corre o risco de se reduzir a um exercício de prestígio interno, irrelevante para a vida concreta das pessoas. O que muitos intelectuais públicos fazem, com todas as limitações do formato, é justamente retomar esse gesto socrático elementar: levar perguntas difíceis para lugares onde elas normalmente não aparecem, provocar algum desconforto, convidar ao espanto e à dúvida.
O diálogo da filosofia com as demais áreas do saber torna-se ainda mais urgente numa época marcada por algoritmos e inteligência artificial (IA). Plataformas digitais selecionam o que vemos, com quem falamos, o que compramos e que notícias chegam até nós, enquanto modelos de IA já participam de decisões sobre crédito, seleção de currículos, políticas públicas, segurança e diagnóstico médico. A questão decisiva, portanto, deixou de ser apenas o que essas tecnologias conseguem fazer e passou a ser que tipo de humanidade queremos ser diante delas, que limites desejamos estabelecer e que valores estamos dispostos a preservar quando delegamos decisões a máquinas e algoritmos. Não basta maravilharmo-nos com a eficiência técnica; é preciso parar, refletir e perguntar quem define os critérios, quem controla os dados, quem beneficia e quem é sistematicamente deixado de fora. Os softwares podem até produzir respostas rápidas, mas não substituem o trabalho mais lento da reflexão crítica, do discernimento ético e da responsabilidade coletiva que essas perguntas exigem.
Nesse cenário em que algoritmos filtram o que vemos e em que decisões vitais são cada vez mais mediadas por sistemas automatizados, a tentação de expulsar a filosofia dos currículos escolares ou de reduzir drasticamente a sua carga horária é perigosíssima para a humanidade. Na prática, trata-se de limitar a capacidade crítica das novas gerações justamente quando elas mais precisariam de instrumentos para interrogar o mundo. A própria UNESCO, ao instituir o Dia Mundial da Filosofia, sublinhou a importância de fortalecer o ensino da disciplina no mundo inteiro, porque a filosofia é um exercício inafastável de questionamento, argumentação e diálogo.
Nesse ponto, é imperativo voltar a Sócrates. O pensador ateniense foi condenado por um júri de cidadãos, acusado de corromper a juventude e de impiedade, isto é, de não reconhecer os deuses da cidade e introduzir novas formas de religiosidade. Aceitou a sentença, recusou fugir e morreu ao beber cicuta. A cidade que o condena não suporta a possibilidade de que seus jovens aprendam a pensar por conta própria, a interrogar tradições, a expor contradições e a desarmar discursos oficiais. Dois mil e quatrocentos anos depois, o incómodo permanece: quem questiona demais ainda é visto como “corruptor”, “inconveniente” ou “desagregador”, sobretudo quando desafia interesses estabelecidos e lógicas de poder que preferem o silêncio à dúvida.
Diante desse contexto, celebrar o Dia Mundial da Filosofia significa muito mais que reverenciar um passado glorioso. Significa defender, no presente, o direito de perguntar, de duvidar, de discordar e de educar a juventude e a humanidade para a crítica, e não para a obediência cega, que só interessa aos regimes autoritários. Em tempos de algoritmos que nos trancam em bolhas de opinião, de reformas educacionais que tentam esvaziar as humanidades e de crises ecológicas e sociais que exigem escolhas difíceis, a filosofia continua a formular a pergunta incómoda que levou Sócrates ao banco dos réus em Atenas, pergunta que hoje poderia ser dirigida a cada um de nós, individual e coletivamente: estamos realmente a viver uma vida que vale a pena ser vivida?

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